Arc Raiders e o ofício invisível de contar sem falar

Arc Raiders começa sempre do mesmo jeito, mas nunca da mesma forma. Eu acordo no ferro retorcido do Cinturão da Ferrugem, a luz cortando o ar como se o sol tivesse sido lixado por dentro, e o som distante de alguma máquina respirando pesado. Há algo de quase humano no ronco metálico dos ARCs, como se o aço tivesse aprendido a sofrer. Eu caminho e sinto o pó grudando nas botas, e o vento — esse vento eletrônico, feito de estática cheio de melancolia e desconfiança — me empurra para dentro do que o jogo chama de missão, mas eu só consigo pensar que é outra história querendo nascer. E lá estou eu. Pronto para fazer parte dela, mas sempre com uma única certeza: independente de qual história for escrita, eu serei apenas um mero coadjuvante.

Há uma cadência na maneira como o mundo me recebe. O cenário vai calmamente se apresentando aos poucos, por entre fendas de concreto e antenas mortas, como se eu precisasse merecer cada pedaço da paisagem e não tivesse pressa para fazer o que fui ordenado. A luz muda com o passar das nuvens, e isso basta para me fazer acreditar que há um clima, um tempo, uma passagem de horas que não me pertence. O som das máquinas, o estalo distante do metal expandindo no calor, os passos que não são meus. Tudo compõe um tipo de oração torta, uma liturgia feita de ruído.

Muitos podem ouvir o termo “extraction shooter” e imaginar que Arc Raiders é sobre tiro, sobre loot, sobre aquele prazer sujo de abrir uma caixa e achar algo melhor que o que se tinha. Não é. Arc Raiders é sobre estar vivo no silêncio entre um disparo e o próximo. É sobre o momento em que você pensa que está só, mas ouve um passo que não é seu, e sua goela prende o ar como quem segura uma lembrança. Eu vejo cada incursão como um conto curto, uma microtragédia escrita com poeira, com barulho de passos e o som de drones sobrevoando o céu e me deixando claro que eu sou o intruso nessa história.

A cada partida, o jogo muda o tom da sua própria voz. Às vezes ele fala em trovões e detritos, às vezes em murmúrios elétricos que só quem joga de fone entende. Há partidas em que o mundo parece querer me engolir, e outras em que ele apenas observa, paciente. É curioso como a hostilidade aqui tem personalidade — ela não é sempre violência. Às vezes é só distância, às vezes é vazio, às vezes é aquele tipo de calma que antecede o caos.

Essa hostilidade não se limita apenas aos possíveis inimigos que você possa encontrar pelo caminho. A arquitetura bruta e hostil das estruturas físicas em Arc Raiders podem ser comparadas a figuras mitológicas de HP Lovecraft. Tudo é muito, muito grande. Tudo é extremamente exagerado. O jogo te assusta em saber que tudo isso pode ser explorado, mas que possivelmente há um preço para isso.

O jogo tem esse jeito estranho de te fazer sentir personagem. Não o aquele protagonista heroico que vai ter uma jornada do herói, mas o figurante que de repente percebe que a câmera ficou nele tempo demais. Quando o drone corta o céu e o alarme vibra, o mundo inteiro parece respirar junto comigo, até porque existem agora chances reais de que algum outro player esteja me observando de longe. O som é parte do corpo do jogo. Desde o estalo a cada eco nas paredes quebradas. É como se o planeta tivesse sido gravado com um microfone dentro do peito, e cada bala fosse a forma que esse coração precisa pulsar para se manter vivo, onde cada silêncio é um parêntese.

Com o passar das horas, começo a perceber que não jogo Arc Raiders, e ele passa a entrar para um seleto grupo de jogos que, pelo menos em experiências multiplayer, apenas a série Arma conseguiu me cativar da mesma forma: entrar no mundinho de cabeça, aproveitar cada momento como se você estivesse fato interpretando um papel como em um RPG. Não aquele RPG onde você tá preocupado em upar seu personagem e desbloquear novas habilidades. Estou falando da verdadeira essência do roleplay de interpretação.

A Embark construiu algo que vai além dos jogos multiplayers tradicionais onde a competição é quase que a única forma de se divertir. Aqui, não. Arc Raiders é um jogo reativo. O mundo é o protagonista e ele reage a cada ação que você faz. A teoria do bater das asas de uma borboleta em um local pode acabar acarretando em uma tragédia do outro lado do planeta, se encaixa perfeitamente aqui. As árvores, as partículas no ar, as estruturas colossais que o vento arranha até o metal ceder, tudo isso parece responder de alguma forma ao simples fato de eu existir ali. O jogo se move comigo, mas não por mim. Há um pacto invisível entre o jogador e o mundo: eu o observo, e ele decide se me deixa passar.

Apesar de ser um jogo extremamente gratificante e mais divertido de se jogar em grupo, aqui estamos diante de um jogo cujo gênero jamais conseguiu entregar um bom equilíbrio entre partidas solos e em grupo. Em Arc Raiders é diferente. Por diversas vezes, principalmente para exploração, prefiro entrar só, porque o mundo de Arc Raiders não tem pressa em me matar. Ele prefere me observar primeiro, medir o tamanho da minha solidão é só então me permitir dar o primeiro passo. A Embark construiu um universo que não é aquele mundo hostil artificial e que é puramente maléfico. Ele é hostil porque não conhece outro jeito de existir. Há uma tristeza industrial em cada torre tombada, em cada antena sem voz. O ferro apodrece, e o jogo parece saber disso. Há algo de poético em lutar contra máquinas que não te odeiam, apenas te confundem com ruído.

Sozinho, o som ganha outra dimensão. O vento deixa de ser ruído de fundo e passa a ser personagem. A chuva, quando vem, não apaga nada — ela só muda o tom da mesma ferida. Há algo de hipnótico em vagar sem rumo, apenas ouvindo, tentando decifrar o idioma do mundo. Em alguns momentos, eu sinto que o jogo está me testando, me provocando a ver o quanto consigo suportar a ausência de propósito. E, estranhamente, é ali que eu mais me sinto parte dele.

Quando eu morro, e morro sempre, não sinto derrota. A frustração é normal, e faz parte da tensão de você ter amor à vida, exatamente como em um roleplay. Na verdade ao morrer, é como se tivesse terminado um parágrafo. Arc Raiders não me deixa com sentimento de punição após um fracasso, já que ele me escreve de novo. Cada retorno é um rearranjo, uma tentativa do mundo de me contar o mesmo conto sob outra perspectiva. Eu começo a reconhecer lugares como se fossem lembranças minhas — aquela farmácia que desabou, uma igreja soterrada por dunas, o ponto de extração onde matei e morri tantas vezes que já perdi a conta. Tudo parece me olhar de volta.

E é nessa repetição que o jogo encontra sentido. Ele me ensina que não é preciso criar algo novo toda vez para contar outra história. Basta mudar a luz, o tempo, o ponto de vista. Há dias em que volto aos mesmos lugares e sinto que algo mudou — talvez o ângulo do sol, talvez o som mais distante, talvez só eu. E essa leve diferença é suficiente para que o jogo me pareça inédito de novo.

Há momentos em que penso que o jogo é sobre convivência, sobre aquele improviso humano diante do inevitável. Quando encontro outro jogador no meio da tempestade, a decisão de atirar ou acenar é uma fábula em si. A gente pode até não falar mesma língua, mas o corpo do jogo traduz: se ele abaixa a arma, eu entendo. Se ele corre, eu sei. Se ele atira primeiro, bem… é hora de ser cowboy. Arc Raiders cria linguagem sem precisar de palavras — é pura sintaxe de sobrevivência. 

Esses encontros são breves, quase acidentais. Às vezes duram o tempo de uma troca de olhares, às vezes se transformam em parcerias improvisadas que terminam em silêncio. Mas há algo de verdadeiro neles. Não é amizade, nem rivalidade. É cumplicidade instantânea, o reconhecimento de que dois corpos decidiram existir no mesmo pedaço de ruído por um instante. E quando isso acontece, o jogo parece sorrir. Mas que fique claro: alguém pode sempre te trair.

A base, Speranza, é o oposto de tudo isso. Um abrigo de concreto, luzes pulsantes e sons humanos tentando parecer confortáveis. Eu volto para ela sujo, exausto, mas leve. É um espaço que respira segurança, mas uma segurança falsa, do tipo que só existe entre uma incursão e outra. Lá, mexo em armas, organizo o inventário, escuto fragmentos de conversa. E percebo que o que me atrai é o intervalo, não o descanso. Porque o intervalo também é história.

As incursões se repetem, mas cada vez parecem outras. Um mesmo objetivo ganha outro peso dependendo da luz, da companhia ou da distância. Às vezes entro para buscar algo específico e saio com a sensação de ter vivido outra coisa completamente diferente. O jogo é mestre em transformar pequenas falhas em narrativas em um novo parágrafo épico. Um tiro errado, um passo em falso, um som que me fez virar na direção errada — tudo se torna lembrança.

Há uma estranha calma depois do caos. Quando a poeira baixa e só resta o som do vento passando pelos restos do que foi uma batalha, eu fico parado. Não penso em recompensa, nem em XP. Fico só ali, tentando gravar aquele instante na cabeça. E percebo que talvez seja isso que Arc Raiders faz melhor do que qualquer outro jogo: criar momentos que não precisam de explicação, nem de medalhas. Momentos que bastam.

Eu gosto de como ele me obriga a desacelerar. Não há pressa em vencer, nem em entender tudo de uma vez. Cada partida é uma conversa longa, onde o jogo fala pouco e deixa o silêncio completar o resto. Às vezes, o silêncio diz mais do que qualquer diálogo. E é curioso como, quanto mais eu jogo, menos eu quero falar.

Arc Raiders é uma máquina de contar histórias porque entende que história não é apenas aquela que se escreve. Para uma história épica, alguém precisa vivenciar ela antes de ser contada. É o barulho que fica quando tudo se cala. É a respiração acelerada e o pé roxo sendo apertado como se tivesse com uma crise de gota antes de atravessar um campo aberto. É o reflexo de uma explosão distante que ilumina o que não devia ser visto. É o medo de perder algo que você nem tem certeza se existe.

No fim, eu percebo que toda minha jornada que poderia se tornar por muitas vezes repetitiva, no final das contas é outra coisa: uma máquina de contar histórias que não sabe parar de sonhar. Ele não escreve diálogos, não fala sobre protagonistas e vilões. E eu, dentro dela, sou só mais uma engrenagem que insiste em me sentir, mesmo que de forma melancólica, parte desse mundo. Cada missão termina como uma página arrancada de um livro que o vento decidiu levar, e talvez seja melhor assim.

Talvez seja esse o encanto silencioso de Arc Raiders. A forma como ele continua mesmo depois que a tela escurece. Há algo no jeito que o som do vento fica na cabeça, mesmo sem fones, algo que pede retorno, não por vício ou por milhões de popups pipocando na sua tela como se você estivesse em um cassino. Você volta por curiosidade. Cada vez que entro, o mundo parece me esperar com uma paciência que nenhum outro jogo tem. Ele não me cobra, mas por outro lado ele nunca me prometeu glória, só presença. E é nessa presença que está a beleza: um jogo que não tenta me convencer de nada, apenas me convida a existir dentro dele, a caminhar de novo entre antenas e poeira, a ouvir o mesmo vento e ver se, dessa vez, ele sopra diferente.