Tormented Souls 2 acerta novamente e é referência em jogo latino de qualidade – Review Sem Spoilers

Ao mergulhar em Tormented Souls 2, é inevitável sentir aquela sensação indispensável ao gênero, que atravessa todo fã genuíno de survival horror: a promessa latente de enfrentar mais que monstros — de esbarrar, num corredor escuro, com as próprias ansiedades, saudades e limitações. Poucos gêneros conseguem captar com tanta precisão o paradoxo da modernidade: quanto mais recursos se tem, mais se perde o senso de escassez e, junto com ele, o medo visceral de errar e sofrer as consequências. Em uma era marcada pela gratificação instantânea, a chilena Dual Effect insiste em relembrar que sobreviver, em qualquer contexto, é antes de tudo abrir mão de certezas.

Confira a nossa análise para o primeiro jogo

O retorno de Caroline Walker acontece não como quem busca redenção, mas como alguém fadado a perseguir vendada (meia piada pronta aqui) o incômodo. O início já faz questão de te dizer: a vida (e a continuação da saga) não vai te dar folga só porque você já passou pelo inferno uma vez. São pobres almas que não consigo vê-las tendo um mínimo de paz nem na hora de fazer o número 2. Ao viajar com Anna para o vilarejo isolado de Villa Hess, o jogo planta uma semente familiar — esperança mascarada de fuga em direção ao alívio — apenas para destruí-la com mais requintes de crueldade. De novo, o estranho é o novo normal, e as imagens sacras e silenciosas das freiras logo cedem lugar à tensão e ao desencanto. Lembro-me que a imagem do cristianismo era tabu nos games até bem pouco tempo atrás, mas isso foi embora muito rápido conforme as gerações de pessoas cada vez mais crescem sem dogmas.

O primeiro impacto reside na ambientação. Tormented Souls 2 abandona a velha mansão (embora ainda esteja presente no DNA) para convidar a explorar ruas de vilarejo, conventos opressivos, centros comerciais gradualmente tomados pelo grotesco, cemitérios misteriosos e passagens subterrâneas. Essa expansão de cenário é um dos maiores avanços do jogo: permite não só rupturas de ritmo, mas também flerta com a tentação de permitir que o medo adote múltiplas formas — do sufocamento claustrofóbico à sensação de exposição desprotegida em ambientes abertos.

Os modelos podem ser já datados, mas a quantidade de detalhes nos cenários, mesmo sem milhões de técnicas de partículas, já se paga

Se rende homenagens aos clássicos, é nos detalhes que a ambientação revela seu próprio pulso. Os efeitos de luz são contundentes — não só enquanto técnica visual, mas como elemento narrativo do design. Aqui, a escuridão não é só um véu: é inimiga fatal, tão ameaçadora quanto qualquer aberração de carne e aço. Tormented Souls 2 obriga a pensar em luz antes de pensar em munição, e essa prioridade invertida ecoa lições que a vida real ignora quando subestima sua própria vulnerabilidade. A audácia de punir instantaneamente ao permanecer nas sombras, enquanto obriga a carregar um isqueiro em vez de armas, é uma mecânica incrivelmente eficaz para criar tensão e forçar escolhas desconfortáveis. Os cenários, mesmo sendo feitos em 3D em tempo real, carregam um nível maníaco de detalhes de objetos posicionados, detalhes da arquitetura, etc.

Essa lógica da escassez — ter de optar entre visibilidade e defesa — é um espelho cruel da administração de recursos em momentos de crise. Quantas vezes, na vida real, trocamos conforto por segurança ou postergamos remédios imediatos em nome de uma promessa de alívio posterior? Tormented Souls 2 entende que horror — seja no jogo ou na existência cotidiana — é, no fundo, uma disputa ininterrupta entre administrar riscos e aceitar que a própria sobrevivência impõe renúncias cotidianas e microtraumas.

Visualmente, este jogo quer tocar num local específico em seu coração: Resident Evil Remake

Quase uma Fábula de Sofrimento

O capricho na direção não está só na estética, mas em como a história se desenrola entre contextos religiosos, temas de culpa, expiação e rituais nefastos. Caroline, marcada pelo passado, nunca é poupada: suas motivações não nascem de heroísmo vazio, mas de traumas, empatia retorcida e laços que sobrevivem mesmo após serem corroídos pelo tempo. Anna, sua irmã, é mais que um MacGuffin; é símbolo vivo de fragilidade, de afeto que, por vezes, se torna uma prisão amarga. Nota de rodapé para a Caroline: ela não parou de ser alvo de body horror, e nessas partes, é preciso um pouquinho de suspensão de crença por parte do jogador.

O jogo aposta alto em cenas que remetem ao melodrama e ao absurdo gótico. Estamos falando da parte ocultista em Resident Evil 4 ou algo do tipo. O grotesco e o surreal surgem com a naturalidade do pesadelo. Mas há um valor inegável nessa escolha: ninguém sobrevive ao horror com dignidade intacta. A estética campy — os exageros de roteiro, os personagens que fogem do naturalismo — tudo serve para tirar a experiência de qualquer zona de conforto. É um lembrete de como, na vida, enfrentamos dramas tão ilógicos quanto opressores, muitas vezes com a sensação de sermos peões de uma história escrita para outro público.

As soluções de design acompanham esse zelo pela imprevisibilidade. Se a crítica à maioria dos “sucessores espirituais” de Resident Evil é o pastiche sem alma, aqui os ambientes, recursos e pontos de exploração são colados por uma lógica própria, ainda que usem o manual clássico só como ponto de partida — nunca como prisão. O medo nasce tanto do desconhecido quanto do familiar torcido à exaustão.

Fricção, Paciência e o Valor do Tempo

Talvez o maior diferencial — e também tropeço — de Tormented Souls 2 reside em como lida com a passagem do tempo e a gestão da paciência. O jogo não suaviza suas pontas: traz uma dificuldade genuína, pouca oferta de recursos e puzzles que respeitam o sujeito atento, mas punem a pressa. Toda decisão — gastar munição, usar um item de cura, investir tempo em exploração aparentemente supérflua — carrega um peso real, uma consequência possível e, por vezes, irreversível.

Não é apenas uma homenagem. É uma declaração sobre o tempo perdido, sobre a vida que não oferece autosave. Quando me vi preso entre salvar progresso e arriscar mais uma sala perigosa, veio a lembrança inevitável de escolhas erradas na rotina: aquelas horas não acumuladas de sono, aquele dinheiro mal investido, aquela palavra dita onde o silêncio teria protegido mais. O jogo é honesto ao extremo — recompensa o metódico, flagela o apressado e se recusa a abrir mão do desconforto.

A reciclagem inteligente de ferramentas, o inventário amplo e a lógica dos puzzles são um ponto alto. São raros os jogos modernos que não hostilizam o básico pela complexidade desnecessária: aqui, a base do design é fazer cada objeto importar, incentivar a revisitação e o experimento. Pouco importa se a lógica é às vezes arbitrária; o valor está no convite à investigação e no respeito à curiosidade (ainda que, como na vida, muitas vezes você descubra tarde demais que prestou atenção no detalhe errado).

Fricção e Tensão

Quando chega a hora de enfrentar as criaturas que espreitam cada canto de Villa Hess, Tormented Souls 2 não mascara sua inspiração: tudo é propositalmente desconfortável, como o seu Silent Hill suspeito de cada esquina. Talvez com monstros muito menos disformes. O combate é menos sobre reflexo e mais sobre cálculo, posicionamento e coragem para escolher entre atacar ou simplesmente fugir. Não existe glamour: armas de fogo são raras, cada disparo parece carregar o peso de uma semana, e o sistema de mira intencionalmente resgata aquela sensação tensa dos controles de tanque.

Se por um lado isso favorece a tensão, por outro limita a fluidez e a variedade das lutas. Os inimigos, distorções de pesadelo em carne e ferro, são inspirados por criações clássicas, mas ganham vida própria. O design evita ataques previsíveis, instigando cautela e experimentação. Contudo, em sessões longas, fica claro que a repetição de padrões pode tornar as batalhas menos memoráveis do que deveriam. Permanece o mérito de castigar o jogador impulsivo, evidenciando mais uma vez que a sobrevivência é feita tanto de bravura quanto de prudência.

É curioso perceber como, ao contrário do que se espera em títulos modernos, a possibilidade de evitar confrontos é quase sempre a decisão mais sábia. Esse convite à evasão faz eco aos dilemas de convivência na vida real: saber escolher suas batalhas pode ser o maior triunfo, e lidar com aquilo que escapa ao controle é parte do amadurecimento. Tormented Souls 2 convida a esse tipo de humildade, recusando o heroísmo sem consequências. Jogadores desavisados, acostumados com jogos de ação, pulando direto para Tormented Souls 2 poderão ter um choque negativo, mas poderão também ter realizações a respeito de game design que só quem é mais calejado e atento já percebe há décadas.

O Valor da Persistência

Nos puzzles, reside outro grande mérito. Muitos deles requerem não só lógica, mas também percepção aguçada do ambiente e paciência. Uma tachinha com agulha pregada no espacinho específico, e que não irá brilhar, fará toda a diferença. O jogo investe em enigmas que atravessam áreas, objetos que dialogam de maneiras não óbvias (mas não vamos encarar exatamente uma moon logic, felizmente), e pequenas histórias escondidas em detalhes — rituais, símbolos, mensagens cifradas. Há momentos em que a solução surge com satisfação genuína, depois de análise cuidadosa, vasculhando inventário, explorando as suposições do level design.

Porém, alguns puzzles caem na armadilha do excesso de arbitrariedade, exigindo tentativas intuitivas que podem frustrar o menos persistente. Porém, novamente, não chegamos a pisar no terreno da moon logic. Se, no horror clássico, a dificuldade era parte da recompensa, aqui o preço por errar costuma ser alto, tornando certas sessões menos recompensadoras do que deveriam ser. É preciso aceitar que nem todos os obstáculos existem para serem superados na primeira investida — a frustração é ingrediente legítimo da experiência.

Esse compromisso com o erro, com a necessidade de testar e revisitar locais, dialoga com os tropeços de qualquer trajetória pessoal. O fracasso, por vezes, é a única ferramenta para amadurecer, e não são todos os jogos que transmitem isso bem. Tormented Souls 2 valida o tempo investido, mesmo quando ele parece improdutivo.

O Tapete Ambição e a Muralha indignação

Na parte técnica, há claros avanços sobre o primeiro jogo — iluminação dinâmica, trilha atmosférica e efeitos de som cuidadosamente trabalhados ampliam a sensação de isolamento e urgência. Villa Hess ganha vida (ou morte?) com ambientações sonoras que evoluem conforme o progresso e novas áreas são descobertas. As vozes de personagens, embora por vezes soem artificiais, sustentam a operação narrativa com dignidade, mesmo que quase teatral.

Infelizmente, persistem falhas: glitches visuais, pequenos bugs em puzzles e momentos em que o jogo se recusa a registrar interações simples. A interface, apesar de melhorada, ainda pode ser hostil aos menos habituados ao estilo velho. É um polimento que avança, mas não chega à excelência. De certa forma, essas imperfeições reforçam o clima de precariedade e risco — mas há de se reconhecer que a paciência do jogador é posta à prova em excesso.

Dito tudo isso, Tormented Souls 2 já faz demais graficamente ao ser como é. As expressões faciais e cabelos dos personagens lembram no máximo algo saído de um jogo de PS4 de começo de geração. Não dá para comparar seus gráficos com algo do escopo de Alan Wake II. TS2 apresenta algo visualmente muito mais formulaico em termos de simulação de músculos faciais e qualidade de texturas de pele.

Ao encerrar a jornada em Tormented Souls 2, fica claro que esse não é um jogo para quem busca gratificação imediata ou progresso sem dor. É uma experiência que exige tempo, paciência e disposição para encontrar sentido até na derrota. Sua maior vitória é devolver ao horror o status de ambiente hostil, onde o grande desafio é administrar recursos, emoções e expectativas.

Nem toda escolha leva ao êxito, e o valor de cada progresso é medido pela soma dos tropeços. O game design, aqui, responde ao apelo dos que pedem profundidade — cada ambiente, puzzle e combate é convite a desacelerar, questionar, revisitar erros e construir sobrevivência mais longa do que simplesmente derrotar monstros.

Se a jornada é madura, é porque seu horror vem da aceitação de suas próprias limitações. Em cada esquina perigosa, cada item perdido, cada vida desperdiçada, está a lembrança de que sobreviver é muito mais sobre aprender a cair do que sobre impedir o tombo. Tormented Souls 2 é, portanto, reflexão jogável: um convite à persistência crítica, ao reconhecimento do valor do tempo bem investido, ao amadurecimento em meio ao caos.

Agradecemos à produtora pela chave de review concedida para Tormented Souls 2

TORMENTED SOULS II

SCORE - 8.3

8.3

MUITO BOM

Um título com alma própria, capaz de resgatar medos antigos e provocar novos — um equilíbrio raro entre respeito às raízes e convite à reinvenção.