Muitas vezes, a qualidade da informação que chega até você pode definir quais obras, em vários segmentos, você vai ou não descobrir.
Atrás de um muro em forma de celular, que muitos insistem em corrigir dizendo “não é um telefone, é um iPhone”, estava o exclusivo Fantasian, disponível na Apple Arcade em 2021. Acontece que, quem está no celular, seja essa pessoa gamer ou não, não deseja exatamente jogar os mesmos jogos de um console, porque, se quisesse muito isso, teria comprado um console.
Fantasian mantém acesa a chama de seu próprio pedigree. Para quem não se lembra, a Mistwalker é o estúdio formado por lendas do jRPG que se desgarraram da Square Enix (e agora retornaram), com o objetivo de produzir uma versão alternativa de Final Fantasy mais tradicional, enquanto as pessoas aguardavam Final Fantasy XIII. Mas antes disso, o estúdio começou com o adorável Blue Dragon, que contava com Akira Toriyama na equipe. Isso fez com que o jogo fosse uma versão alternativa de Dragon Ball, e de boa qualidade. Caso o jogo tivesse sido lançado em alguma plataforma da Nintendo na época, o proveito teria sido muitíssimo maior. No entanto, entendemos que essa empreitada e a que se seguiu foram investimentos da Microsoft no Xbox 360.
Lost Odyssey, em 2007, era o Final Fantasy que muitos esperavam. Muitos até dizem que você pode encarar esse jogo como um FF, já que, por trás dele, estão Hironobu Sakaguchi e Nobuo Uematsu (assim como em Blue Dragon). Lost Odyssey conta com uma narrativa muito tocante, sobre o protagonista imortal que vê diante de seus olhos gerações e amigos indo embora.
São muitas histórias paralelas dessas vidas passadas, servindo como contos poéticos, apresentados como um slideshow dinâmico, o que agrega à boa escrita dessas pequenas historietas.
O estúdio, com seus nomes lendários, também se aventurou pela Nintendo no Wii com The Last Story, mas uma constante que posso notar desde a criação da Mistwalker é o esforço ativo para manter o jRPG mais tradicional vivo, com alta qualidade narrativa e sentimental.
Essa volta toda é o meu desejo de tornar dramática a existência do estúdio e o pouco valor que é dado até mesmo por pessoas que se dizem aficionadas pelo subgênero. Raramente esses jogos são lembrados, a não ser quando estamos assistindo a algum vídeo sobre gemas do Xbox 360 ou do Wii, ou algo assim.
Fantasian tem como chamariz seus gráficos feitos de dioramas e miniaturas de todo o cenário no qual você navega, no melhor estilo Final Fantasy do PlayStation 1. O jogo já era belo na tela do telefone, mas agora que o período de exclusividade acabou, podemos jogá-lo nas outras plataformas com gráficos melhorados.
Imagine um jogo onde cada pedaço de tela é cuidadosamente construído, desde o mapa geral e suas cidades até as “dungeons”. Os objetos são graciosamente modelados, às vezes com elementos digitais para compor o resultado final. O orçamento para isso provavelmente foi limitado, e acredito sempre que limitação é a chave para a criatividade, resultando em soluções superiores. Como estamos falando de um jogo que funciona como uma sequência de fundos pre-renderizados onde os personagens 3D navegam por cima, o conjunto de telas, como o corredor de um castelo, por exemplo, exige criatividade. Cada vez que você caminha para a próxima tela, ela pode ser praticamente a mesma da anterior, mas arranjada de maneira levemente diferente. Além disso, a transição de uma tela para outra é feita com a mistura de um borrão de movimento artificial com o movimento real. O resultado é que, na tela seguinte, você tem a sensação de que giraram o diorama para que você visse a paisagem de outro ângulo. Esse é um toque legal, que sobrepõe as famosas travadinhas das telas de jogos que utilizam a técnica de sequências pre-renderizadas. Porém, isso pode desnortear um pouco alguns jogadores.
A exploração no mapa segue muito parecida com os últimos Final Fantasy de PS1, com poucos caminhos diferentes a seguir, sendo normalmente um o principal e o restante levando a um baú ou item. Ao longo do caminho, estão os famigerados monstros invisíveis, trazendo para Fantasian o sistema de encontros aleatórios dos quais muitos hoje em dia preferem evitar.
Fantasian brinca com essa questão e logo apresenta um interessante sistema para evitar batalhas. Logo no início, seu personagem adquire um artefato tecnológico que pode ser ligado e desligado a qualquer hora. Quando ativado, as batalhas aleatórias são desativadas, e os monstros desaparecem. Na verdade, eles passam a ser sugados para o aparelho toda vez que você encontra um deles. E não, o aparelho não vai reciclar esses monstros. Ele vai guardá-los para que você possa adiar essas batalhas, ou seja, para um momento em que esteja mais disposto a lutar. Quanto mais você protelar, mais inimigos você terá que enfrentar de uma só vez. Isso mesmo. Temos um sistema de turnos em que mais de 20 inimigos podem estar na tela. O seu aparelho funciona como um copo, e quando transborda, você terá que enfrentar os inimigos imediatamente. Após a batalha, o “copo” volta a estar vazio. Portanto, é prudente não encher tanto o aparelho com inimigos de áreas duvidosas e escolher lutar com eles bem antes que o aparelho se encha por completo.
Para enfrentar tantos inimigos, teríamos que contar com alguma regra diferenciada, correto? Pois Fantasian traz uma reviravolta no sistema de batalha que revitaliza minha vontade de atravessar um jRPG. No cerne, a batalha é exatamente a mesma, com os personagens sendo vistos de um ângulo fixo e até a chance de ver a ordem dos ataques de todos os presentes no campo. A novidade é que, antes de atacar, há um arco de trajetória sendo desenhado em direção ao inimigo. Como numa versão maluca de sinuca, alguns golpes específicos de certos personagens podem fazer curvas nesse arco, permitindo que você atinja um inimigo que, antes, estaria fora do alcance do seu personagem. A coisa fica ainda mais interessante quando se percebe que alguns golpes atravessam os inimigos. Assim, todos aqueles que estiverem atrás do primeiro serão atingidos. Misture a capacidade de dobrar o arco em alguns poderes e golpes, e você tem um sistema de batalha interessantíssimo, que alcançou esse feito introduzindo apenas um simples detalhe adicional.
Como você poderia imaginar, a trilha sonora está garantida com qualidade, com Nobuo-san no comando. Além da excelente trilha que acompanha as aventuras e da viciante música de batalha, como o jogo está sob a égide da Square Enix e nas mãos de seus “pais”, essa junção perfeita de astros permite que o jogador simplesmente troque as músicas de batalha do game por músicas clássicas de batalha dos jogos Final Fantasy! Eu diria que a chave é deixar na opção random e ser feliz.
O quê? Você está aqui pela história? Bem, eu gosto de manter o mínimo dessa parte contada em minhas reviews, mas vou dar uma colher de chá. Leo está inicialmente em algum tipo de corporação, com maquinários, junto de aliados, em uma missão que parece ser um ato de rebeldia contra algum sistema. Mas logo, em um ato de desespero para sair de uma situação difícil, Leo retorna a um lugar familiar, uma cidadezinha esculpida numa montanha de barro. Só que você não vai acreditar se eu disser que ele, neste momento, está sem sua memória e precisa recuperá-la aos poucos! Essa ferramenta é utilizada para que o jogador pegue na mão oferecida pelo personagem e ambos descubram o jogo, e, assim que o jogador estiver familiarizado com as regras e o lore, chega a hora do personagem recuperar as memórias. O que se pode dizer deste mundo é que esferas brancas caíram do céu, num ato de castigo divino. Elas se situam em várias áreas e sugam o que existe por ali, com seus nojentos tentáculos pretos, que representam um perigo para as pessoas. Isso causa o isolamento de povos ou uma população que teve que se mudar às pressas para que o novo e horrível habitante ficasse ali.
Nessa jornada de descoberta, vamos ter o melhor que a Mistwalker tem a oferecer: a escrita. De volta estão as pequenas passagens guiadas por textos animados e algumas ilustrações, exatamente como em Lost Odyssey. Aqui, elas narram as memórias de Leo voltando, ou o passado de personagens que ele encontra. A narrativa não tem pressa e flui de forma bela enquanto a música emocional permeia o ar. Essa parte específica não será entregue por qualquer jRPG, não desta maneira, pois há um jeito muito cuidadoso e autoral com que isso é feito. Portanto, esse será o ponto de recompensa do jogo. Logo em seguida, eu diria que a segunda maior recompensa é consumir com os olhos os cenários feitos à mão.
Agora, quem planejou as partes de motivação, que estão diretamente atreladas ao gameplay e às missões, não parecia estar tão preocupado com os detalhes, ou talvez nem com isso. A motivação de alguns personagens parece solta, e os motivos para seguir Leo, além das missões iniciais, parecem mais um sonho febril ou algo bobo demais. Por exemplo, temos uma missão logo cedo no jogo em que um vidente pode revelar mais sobre você, mas cobra um alto valor por isso. É aí que o jogo introduz a “neta” deste vidente, que decide acompanhar Leo em busca de dinheiro numa floresta vizinha. Resta a você confiar no desenrolar da história e apreciar algumas narrativas casuais que serão oferecidas dentro desse contexto.
Fantasian Neo Dimension é rebalanceado em relação ao jogo original, mas também traz voice overs para as conversas mundanas como novidade. Infelizmente, o game não vem com tradução para o português, o que é uma pena, já que o que se lê aqui está acima da média de qualquer jRPG.
Minha jornada com Fantasian Neo Dimension foi uma réplica muito parecida com a alma encontrada nos melhores Final Fantasy, com um tom muito delicado que permeia todo o sentimento ao longo do jogo, sem abrir mão de seus desafios e mistérios. Esse jogo merecia mais destaque e um marketing mais forte, mas creio que poderá acabar encaixotado ao lado de tantos outros jogos de RPG insossos.
Fantasian Neo Dimension
SCORE - 8.4
8.4
Você Precisa Jogar
Fantasian Neo Dimension é uma pérola escondida a ser descoberta por muitos jogadores historiadores do futuro, e com isso espero que a Mistwalker siga produzindo jogos dos quais acredito que façam com prazer. Seus soluços nas pontas das linhas de alguns personagens e suas motivações desconexas não estragam nem de longe a qualidade geral que o jogo possui.