Dreams of Another tem uma beleza literalmente criativa mas não vai longe com sua premissa

Quando “Dreams of Another” apareceu nos holofotes internacionais, a promessa de uma abordagem filosófica — “não há criação sem destruição” — chamou atenção além do que o público costuma esperar de aventuras atmosféricas. O jogo, desenvolvido pela Q-Games, propõe um gameplay que inverte o jargão básico dos jogos de ação: não é sobre eliminar tudo à vista, mas reconstruir mundos fragmentados, usando a própria mecânica de disparo para materializar novas passagens, plataformas e fios narrativos. Essa inversão não é somente um truque técnico, mas a alma conceitual do jogo: tudo se trama em torno da reconstrução, do renascimento a partir do que antes era escombro e ruína. Tal proposta, no entanto, impõe ao jogador um desafio duplo — de leitura e de adaptação — e é nesse ponto que as opiniões divergentes das resenhas internacionais convergem para criar um mosaico crítico muito interessante: um jogo tão denso quanto instigante, mas também capaz de confundir e cansar quando a sensação de sonho vira excessivamente abstrata.

Do ponto de vista estético, “Dreams of Another” se destaca logo no início.Os cenários surgem como fragmentos líricos de uma memória distorcida, com espaços que ora evocam o familiar, ora mergulham no surreal. Com um estilo de arte praticamente único para jogos, a paleta cromática alterna entre tons frios, ambientes vazados e fulgores de luz estrategicamente posicionados, reforçando a ideia de mundos em transição. É um convite claro à contemplação, e a arte não se limita ao visual — o design sonoro, quase minimalista, envolve o jogador com trilhas suaves, silêncios longos, e vinhetas que soam como respirações entre uma revelação e outra. Quando a música cresce, é para marcar o limiar entre uma percepção antiga e uma nova epifania. Mas será que o que compõe o jogo nas entranhas consegue acompanha o inicial impacto artístico visual?
A estética “sensível” de “Dreams of Another” não é universalmente bem recebida — nem era de se esperar. Existe uma insistência em manter tudo subjetivo, em vez de oferecer pistas claras, o que pode frustrar jogadores menos afeitos ao improviso onírico. Há momentos em que o mundo do jogo pede do usuário raciocínios que se revelam por tentativa e erro, e nessas horas, a falta de feedback mais direto pode esfriar o envolvimento. Um ponto recorrente está nos puzzles: quando o jogador precisa alinhar perspectivas para “costurar” fragmentos do cenário, a mecânica de reaparecimento ou recontextualização funciona muito bem, mas, em passagens intermediárias, o excesso de camadas simbólicas e regras não verbalizadas cansa. O jogo, ao tentar soar poético, por vezes se enreda demais na própria proposta e acaba deixando o jogador à deriva — não por desleixo, mas por uma escolha calculada que nem sempre encontra todos os públicos.

Já as mecânicas, que giram ao redor da ideia de reconstrução em vez de destruição, são vistas como o maior trunfo conceitual do jogo. O disparo — normalmente símbolo de violência — aqui serve para reorganizar o mundo, criar plataformas, desbloquear passagens, e até instanciar novas narrativas latentes. O jogo força o jogador a repensar o papel do protagonista: não é um guerreiro destruindo, mas um artífice redescobrindo. Essa abordagem é celebrada por críticos acostumados com immersive sims, adventure puzzles e walking simulators, pois o sistema “abre” a possibilidade de experimentação. O loop de explorar, experimentar, transformar e abrir outros caminhos se mostra muito rico, especialmente nas primeiras horas, quando tudo é novidade. O problema, é que esse sistema tende a perder força na transição ao segundo terço da aventura: quando a surpresa da criação se dissipa, o jogador começa a sentir falta de objetivos mais claros e de maior variedade nos puzzles apresentados.
A estrutura narrativa é outro ponto de debate. Os ambientes de “Dreams of Another” são próprios de quem busca compreender mais do que vivenciar: existem caixas de texto, mensagens, frases soltas e audiologs deixados não como explicação, mas como eco da vida sonhada. Os personagens não são tanto seres vivos quanto vozes recortadas, presentes por sugestões, não por presença física. A trama, profundamente pessoal e melancólica, mergulha em luto, deslocamento e o desejo de reconstruir memórias — e é aqui que os consensos críticos se bifurcam. Para alguns, a densidade narrativa e a ausência de respostas diretas constituem os grandes méritos do jogo. Para outros, especialmente os que esperam clareza, o excesso de subjetividade vira um muro de abstrações intransponível, levando à frustração e à perda de engajamento.
Entre os puzzles, destaque para o alinhamento de perspectiva, a recontextualização de objetos-totem e o uso do espaço como peça ativa na solução das travas de progresso. Esses segmentos são celebrados por trazer epifanias reais: o momento em que você “vê” o que não estava vendo, completa uma sombra e converte em chave mecânica. O problema é que, no meio da caminhada, alguns puzzles se tornam convencionais demais (sequências, padrões repetitivos e trancas disfarçadas), quebrando temporariamente o encanto do design. Felizmente, o jogo evita insistir nessas fórmulas e se esforça para renovar a proposta nas etapas finais.
Vale destacar que “Dreams of Another” aposta de forma consciente na ambientação sensorial. O design sonoro elevado, a trilha composta para dramatizar revelações, o silêncio utilizado para instigar e a escolha artística do minimalismo contrastam fortemente com blockbusters focados em ação incessante e excessos visuais. Esse ponto, é o melhor exemplo de como o jogo acredita mais no envolvimento emocional do jogador do que na sobreposição de estímulos.
Existe também uma média entre a falta de ritmo nas áreas centrais, puzzles pouco inspirados a partir da metade do jogo e a sobrecarga simbólica nas etapas finais, que acabam por diluir a força central da mensagem. Outro detalhe que incomodou foi a ausência de feedback direto quando uma solução é encontrada ou uma regra muda silenciosamente, causando aquela sensação incômoda de “o que faço agora?” que poderia ser mitigada com pequenas pistas visuais ou auditivas.

Por outro lado, as melhores sensações incluem: o impacto da reinterpretação dos espaços, o uso criativo do disparo para reconstrução, a relação entre música/silêncio como tecido emocional, e duas sequências arrebatadoras no terço final — uma delas reescrevendo toda a lógica de um objeto emblemático, outra trilhando um coral distante sobre ruído de fita, que tranquiliza e inquieta em dose semelhante. Esses momentos foram altos o suficiente para marcar o jogo como um dos indies sensoriais mais notáveis do ano.
Quanto ao fator replay, existe uma leve opção de múltiplos caminhos e pequenas variações em certos puzzles, mas nada que reconfigure a experiência principal de maneira significativa. Fora algumas conquistas/troféus secretos e colecionáveis de audiologs, o jogo é mesmo feito para uma experiência única, contemplativa, sem pressão por “mais runs”.
Ao analisar tudo com calma, destaco que “Dreams of Another” é uma obra de ambição rara — corajosa em apostar na reconstrução em vez da destruição, generosa em criar espaço para epifanias e inquietações. A direção de arte e o sound design são os pontos mais fortes, capazes de criar um ambiente genuinamente imersivo. A filosofia do “criar para entender” é potente, mas o ritmo em algumas áreas e a hesitação na sinalização de regras enfraquecem o impacto.
DREAMS OF ANOTHER
SCORE - 6.9
6.9
OK
Dream of Another é recomendação segura para quem busca experiências sensoriais, narrativas não-lineares e puzzles inventivos, especialmente para jogadores abertos à subjetividade e à delicadeza atmosférica. Para quem precisa de progressão nítida, objetivos explícitos e puzzles mais tradicionais, pode faltar um fio condutor mais firme — mas, ainda assim, para seu público-alvo, é uma obra de destaque e respeito. Minha versão testada não incluiu o uso do PSVR2, sendo jogada na versão padrão.




