Mais uma manhã. Você acorda na sua cidade costeira, e ao olhar o mar, lá está o gigante monólito, com a dama igualmente gigante, pronta para apagar o número gigante pintado ali, para pintar outro número. Mas onde você passou a noite que não acordou a tempo de se aprontar para a cerimônia de seus entes queridos? Ver todas as pessoas é tão normal que a tristeza é intrínseca, e o ritmo de vida deste lugar nunca mais foi o mesmo.

Minha história com JRPGs começa de forma mais impactante a partir de Final Fantasy VI (então FFIII aqui). Havia algo naquele cartucho na estante de meu primo mais velho que mostrava que não se tratava de algo barato e, dessa forma, não era um jogo qualquer.
Isso ficava claro ao assisti-lo jogar. As ilustrações, acima da média, pareciam pinturas. A trilha sonora que, por vezes, imitava algum filme medieval da época (estou falando de 1995)…
Caí de vez nas graças desse gênero só com Final Fantasy IX, logo no lançamento, mas Final Fantasy VII foi importante para eu me empolgar com histórias em jogos, em vez de apenas correr atrás de desafios e superá-los. Antes disso, a narrativa era emergente e pessoal: era sobre a minha escalada. Talvez por isso o choque com Resident Evil tenha sido tão grande, já que era uma história fácil de acompanhar, mesmo sem um bom inglês.
Queria chegar em Final Fantasy IX porque é o jogo que exala oniricidade e traduz perfeitamente o que a série tem de mais particular. Lembra daquelas memórias ricas, onde tudo parece quase o céu? É um sentimento que, se fosse tangível, se manifestaria como um lugar bonito, onde nada representa atrito. A visão é levemente borrada, como a de um sonho mesmo. Final Fantasy, em seu âmago, é isso. Se um novo título falha em passar essa sensação, mesmo que parcialmente, ele falha como Final Fantasy, não importa o que mais ele acerte.

Ultimamente, a Square tem corrido atrás de replicar esse conjunto complexo de sensações que o título mesmo expressa sobre o que você está prestes a consumir.
Existem pessoas neste mundo que lhe compreendem, mesmo que seus pensamentos sejam os mais complexos e pareçam únicos. Silent Hill 2 Remake é a comunhão dessas pessoas entendendo Silent Hill em cada textura de grama triste que brota da calçada da cidade virtual.
Clair Obscur: Expedition 33 é essa reunião. O chamado a pessoas sensíveis a esse tipo de conteúdo combinado. Essa reunião de arte e poesia incorporada numa obra digital, que utiliza vários instrumentos para alcançar um resultado que às vezes nem eu sei se a equipe tinha consciência de que estaria alcançando.

O estalo em pleno lockdown
Em 2020, a vida do diretor Guillaume Broche parecia igual à de muita gente: aprisionado em home office, com reuniões intermináveis na Ubisoft e aquele tédio existencial típico da quarentena. Foi nesse cenário que ele teve a ideia que mudaria tudo: criar um RPG turn-based digno dos clássicos japoneses, mas com a cara e o charme da arte europeia.
A inspiração vinha da infância: Final Fantasy, Persona, Lost Odyssey e Blue Dragon. Mas, no mundo AAA, faltava espaço para turn-based com produção caprichada. Então, ele decidiu tirar a ideia do papel por conta própria. Abriu uma demo bem simplória, só para provar o conceito, e soltou um post no Reddit procurando gente disposta a gravar falas de graça. Sem saber se alguém responderia, mandou ver — e surpreendeu-se.
Logo no primeiro post, surgiu o primeiro nome: Jennifer Svedberg-Yen. Isolada na Austrália, ela leu o chamado, gravou uma audição “na brincadeira” e conquistou o papel de protagonista no demo. Pouco depois, com o script crescendo, tornou-se a roteirista principal do projeto.
O mesmo aconteceu com o compositor Lorien Testard. Em vez de caçar veteranos de estúdio, Guillaume fuçou no SoundCloud e achou Lorien postando músicas inspiradas nos mesmos jogos. A sintonia foi imediata: referências em comum, conversas que fluíam e aquela química que só acontece quando criatividade e oportunidade batem na hora certa.
Com voz, roteiro e trilha começando a tomar forma, Broche levou o protótipo à Kepler Interactive, uma publisher que se define como cooperativa: eles oferecem apoio financeiro e liberdade criativa em vez de engessar a equipe. O resultado? Liberação de verba, demissão estratégica da Ubisoft e fundação oficial da Sandfall Interactive, em Montpellier, ainda em 2020.
Eu não sei se é preciso dizer, mas Sandfall é uma alusão a algo constituído de areia, que, ao toque mínimo equivocado, pode desmoronar. O resto da ligação, você pode fazer aí sozinho.
O estúdio começou com um núcleo de 30 pessoas — entre ex-funcionários da Ubisoft e talentos juniores descobertos nas redes. Nada de organogramas rígidos: todo mundo vestia várias camisas, entrava em reuniões de design ou dava pitaco em animações. A meta era clara: criar um RPG turn-based elegante, rápido o bastante para não arrastar e profundo o bastante para emocionar.

A virada técnica: O Castelo de Areia que toma forma
No início, a equipe desenvolvia no Unreal Engine 4 — terreno conhecido e seguro. Mas, em 2021, a Epic lançou o UE5 com Nanite e Lumen, prometendo assets pesados sem impacto de performance e iluminação dinâmica de cinema. Foi irresistível: depois de pesar prós e contras, migraram tudo para UE5 no meio do desenvolvimento.
Isso exigiu um parto: reescrever shaders, reconfigurar pipelines de iluminação, retestar animações e ambientes inteiros. Mas o esforço compensou. A ambientação chiaroscuro (luz e sombra dramáticas) passou a brilhar no jogo, dando vida ao nome Clair Obscur. Enquanto o UE5 cuidava dos cenários genéricos — rochas, prédios de fundo, vegetação —, a Sandfall concentrou energia nos “hero assets”: personagens, criaturas e objetos que realmente contam a história.
Para cumprir cronograma e polir detalhes finais, a Sandfall recorreu ao outsourcing. Contrataram estúdios parceiros para animações, efeitos especiais e modelagem extra, chegando a quase 50 colaboradores externos no pico da produção. Assim, mantiveram o orçamento da Kepler sob controle e ganharam agilidade quando mais precisavam.
Essa mistura de time fixo enxuto e reforço pontual provou ser a fórmula ideal: a equipe central manteve coesão e identidade, enquanto os parceiros ampliaram a capacidade de entrega nos picos de demanda.

Uma pegada Belle Époque
Agora, vamos ao momento mais didático, que é falar sobre a premissa de Clair Obscur.
Visualmente, Expedition 33 respira a França do fim do século XIX. O jogo se passa em Lumiere, versão distópica de Paris dominada por um monólito gigantesco, com um número gigante brilhando no topo. A cada ano, a misteriosa “Aratífice” (The Paintress — e eu prefiro muito mais o nome em português) desenha esse novo número, levando todo mundo da idade correspondente para uma morte que a sociedade aprendeu a aceitar de forma poética, a ponto de formar um festival para a despedida.
Para criar esse clima, o time mergulhou em referências de pintura Belle Époque e Art Déco: trajes de gala, arquitetura elegante e luzes dramáticas. Esse contraste — sofisticação versus horrores sobrenaturais — dá a identidade única do jogo, que se apoia tanto em cenários cheios de detalhes quanto em batalhas old-school de turnos.
É claro que existem aqueles que não aceitam isso (uma minoria, certamente) e outros que estão intrigados desde sempre, desejando obter um conhecimento mínimo que seja para ter uma fagulha de ideia do que pode estar acontecendo.
Para isso, desde que o mundo (dessa sociedade) se encontra nesse estado, foi criada uma entidade quase militar: os expedicionários, que partem em grupos todo ano, logo após o evento que tira a vida das pessoas cada vez mais novas, ano a ano. Essa expedição tenta se aprofundar mais e mais no mundo selvagem diante deles, além da ilha onde se encontram, e a ida significa não voltar mais, estando entregue à morte dentro da vastidão letal que o mundo se tornou.
Isso tudo que contei tem implicações deliciosas para formar histórias e mais histórias. Os pais que irão sumir este ano devem deixar seus filhos com alguém; o expedicionário que quer ir porque sabe que, no ano que vem, morreria de qualquer jeito pela Aratífice; ou mesmo aqueles que querem ir prematuramente.
Um novo molde é repousado sobre essa sociedade.
Para uma premissa delicada, um visual condizente é necessário, e isso se traduz em arquitetura europeia em peso enquanto estamos em locais com traços de civilização.
De resto, temos o nosso mundo virado de ponta-cabeça em termos de regras da natureza. Isso se traduz numa beleza assustadora pelo desconhecido. O jogo reforça essa letalidade selvagem nos primeiros segundos após pisarmos em solo estranho. É um aviso, uma marcação de que tudo dali em diante é mortal, mas belo. Para nós e para os personagens. Assim, iremos descobrir essa beleza juntos.
Uma floresta colorida com algas e corais gigantes forma um ambiente aquático, mas com o detalhe de que em momento algum é expresso que entramos debaixo d’água. Em outro momento, podemos estar em vales—

Old-school com adrenalina
Embora seja turn-based, ninguém se arrasta por menus intermináveis. Guillaume e a equipe queriam fluidez: sistema de parry, dodge e quick-time events para quebrar a rigidez dos turnos puros. A inspiração veio de Sekiro e de RPGs clássicos que inserem minijogos de reflexo.
Pessoalmente, me lembra demais jogos como Lost Odyssey, Shadow Hearts, Paper Mario e Legend of the Dragoon. Isso pode significar que esse sistema é feito para ser dominado, e não apenas revisitado à exaustão até que a força do personagem apareça de forma bruta e artificial — algo que é da natureza de JRPGs (e RPGs no geral) e que eu estaria OK se evoluíssem dessa forma aqui, sempre fossem assim daqui em diante, com algumas opções para os mais saudosistas.
O resultado dessa roupagem — que nem sempre está presente nos jogos turn-based — é um combate que mescla estratégia e reflexos. Você planeja ações, escolhe habilidades e, na hora do ataque, tem a chance de ampliar ou reduzir danos com botões certos no tempo exato. Isso mantém o ritmo vivo, agrada fãs de jogos de ação e torna cada encontro mais imprevisível.
A ideia pode ser boa o suficiente, mas se a execução não for só boa, mas corajosa, de nada adianta. E fico feliz em dizer que não estamos apenas falando de uma releitura de velhos hábitos, mas de uma execução que segue adiante em ser melhor do que nunca.
Quem trabalha direito é porque é bem chefiado e assistido
Graças ao apoio da Kepler, a Sandfall atraiu nomes de peso. O protagonista recebe a voz de Charlie Cox (o Demolidor da Netflix), e uma figura misteriosa ganhou o talento de Andy Serkis (Gollum em O Senhor dos Anéis). Participam também Jennifer English e Ben Starr, atores veteranos de videogame.
No entanto, o núcleo criativo continuou orgânico: Jennifer Svedberg-Yen (aquela do Reddit) virou roteirista principal, coordenando diálogos, tramas e traduções para vários idiomas. Cada personagem — Gustave, Lune, Maëlle, Sciel — ganhou personalidade marcante em papéis escritos por alguém que começou gravando falas grátis.
Isso é importante para que o DNA de um projeto continue autêntico. As transformações ocorridas com a chegada da grande máquina capitalista podem borrar e desfigurar mil projetos de gente bem-intencionada, e uma empresa, por vezes, soa mais como um obstáculo entre o artista e o público. Mais um ponto para a obra que, até aqui, passa invicta — não fossem os menus confusos. Mas é o que dizem: grandes corações ofuscam pequenos monstros. É mentira, inventei isso agora.

A jornada ao estrelado
Lançado em 24 de abril de 2025 para PC, PlayStation 5 e Xbox Series X/S (e incluído no Game Pass), Clair Obscur: Expedition 33 voou nas prateleiras digitais. Em apenas três dias, ultrapassou um milhão de cópias vendidas. O Spotify pegou carona: a trilha sonora entrou em charts virais, mostrando que a música original de Lorien Testard também conquistou o público.
Um músico sem experiência trabalhando com games, pescado do rico mar do SoundCloud, deixa seu rastro nacionalista — tal como as outras áreas do jogo — e enche de orgulho o país sediador da última Olimpíada. Eu gostaria que essas Olimpíadas fossem hoje, para ver Clair Obscur retratado na abertura, essa obra que com certeza me emocionaria em níveis inexplicáveis.
Lorien Testard, rapaz, já pode ir pra Hollywood e emocionar adultos que fumam charutos e acadêmicos que tomam whisky caro.
O lance com a parte musical de Clair Obscur é que ela foge, por vezes, dos clichês sonoros. Além de corroborar com o tom onírico antes mencionado, não está presa a cordas de orquestra. Na verdade, a vocalização e instrumentação têm como base violões com corda de nylon (que fazem parte do repertório europeu no geral). A voz de Alice Duport-Percier também não cai nas armadilhas que esperamos de jogos que querem passar grandiosidade na narrativa. A variação também é importante, com ensaios quase techno com acordeom e prog-rock emocional em instantes pontuais.
Críticos e jogadores elogiaram a história diferentona, a dose cavalar de exploração criativa e o combate híbrido. O presidente francês, Emmanuel Macron, postou no Instagram: “Um milhão de cópias e, até hoje, um dos jogos mais bem avaliados da história: e sim, é francês! Parabéns à Sandfall Interactive e a todos os criadores de Expedition 33. Vocês são um exemplo brilhante da audácia e criatividade francesas.” É o videogame como arte, que consegue furar a nossa bolha egoísta e chamar atenção em polos que não imaginávamos.

CLAIR OBSCUR: EXPEDITION 33
SCORE - 10
10
OBRA PRIMA
Na prova de fogo que um jogo passa entre críticos como eu, que relutam em dar um 10 pra qualquer jogo que sorri bem-intencionado, Expedition 33 não precisa sorrir para mim. Eu lhe dou o que você não pediu, mas o que você merece.