Dragon Quest I & II HD-2D Remake — É a modernização testando a alma do clássico | Review
Nada mais emblemático para a maturidade do RPG japonês do que encarar, quase 40 anos depois, o retorno dos primórdios num traje contemporâneo. Dragon Quest I & II HD-2D Remake não é só uma reimaginação artística: é uma valente experiência de tradução cultural e geração. Enquanto muito do marketing gira em torno do impacto visual, o que permanece depois de dezenas de horas não é só o deslumbre gráfico — é o embate entre tradição e adaptação, entre pureza e comodidade, entre o “jogar por devoção” e o “jogar para revisitar o mito”.
Essa coletânea — que primeiro instiga o olhar pelo HD-2D, unindo sprites caricatos a cenários tridimensionais imersivos e trilha orquestrada — faz escolhas ousadas e algumas arriscadas. A experiência do renascimento desses RPGs não é linear nem universal: há momentos em que a emoção de estar diante de um marco revive o deslumbramento original, e outros em que o excesso de respeito ao passado ameaça a vibração vital da aventura.
Dragon Quest I & II HD-2D Remake desafia a nostalgia a conviver com as demandas e os limites do presente, apostando em oferecer uma ponte entre tempos que não se encontram mais sem fricção.

Uma aula em apresentação e respeito técnico
Logo ao começar, a imersão visual é um espetáculo. O HD-2D personifica a busca contemporânea pelo “clássico elevado”, apostando em iluminação dinâmica e texturas que dão vida real a bosques, vilarejos, mares e castelos. O contraste entre as silhuetas dos personagens e os fundos detalhados é o tipo de escolha que não depende do hardware mais avançado para impressionar — cada frame é movido pelos princípios de quadro pintado à mão, mas nunca perde seu DNA de videogame.
Não é só efeito para screenshots: a paleta de cores, os reflexos, as partículas dançando no ar e a composição quase teatral das cenas são protagonistas. E, ao contrário dos pesadelos de otimização dos remakes de RPG, tudo roda com fluidez no PlayStation 5 – a plataforma no qual o título foi analisado. Já tive relatos de colegas em que problemas de performance estão presentes na versão Switch, então vale a consulta antes de comprar para aquela plataforma, e se, você não tem planos de fazer o upgrade para o Switch 2. Para quem valoriza cada pixel, essa diferença técnica é notável — e dá argumentos para vivenciar o jogo no hardware mais avançado possível.
O outro pilar é a trilha sonora — talvez o elo mais emocional entre gerações. Koichi Sugiyama é revisitado à altura: a orquestração dá volume, peso e textura à jornada, com arranjos que flutuam entre o etéreo do mundo de fantasia e o heroísmo melancólico da solidão, especialmente no primeiro jogo. A música embala momentos de vitória, serve como respiro em vilarejos, e injeta dramaticidade em chefes que talvez, nos originais, tivessem se perdido no diálogo apressado ou no pixel estático. Em 2025, nenhum remake de JRPG atingiu essa completude sinfônica. Falar de trilha sonora boa e Dragon Quest é chover no molhado. Dá para sentir a humanidade da gravação de um grande salão orquestral, invés de DAWs e VSTs que simplesmente amam não só filmes, mas games também.

Narrativa, intimidade e o poder da simplicidade
Mas HD-2D, por si só, nunca sustentaria o peso do legado. O aspecto mais fascinante da nova coletânea é como ela instiga a redescoberta da narrativa-fragmento: o jogador é convidado a explorar motivações heroicas extremamente simples — a jornada do escolhido, o resgate do reino, o combate ao mal primordial — mas em um ritmo e escala que raramente se vê em RPGs modernos.
Dragon Quest I é, até hoje, um conto arquetípico — quase bíblico em sua forma e execução. Revisitar sua estrutura é como abrir um livro de fábulas, onde o sentido da aventura se constrói mais no silêncio das caminhadas, na solidão dos campos vazios, na cadência das conversas em vilarejos, do que no clímax esperado de grandes reviravoltas. O remake não embeleza as tramas; ao contrário, valoriza a prosaicidade, tornando-a poética em sua economia de palavras e ações. O jogador que aceita absorver esse ritmo encontra ali um antídoto para as ansiedades do conteúdo contemporâneo: tudo é curto, seguro, imediato — mas exige curiosidade, paciência e vontade para se deixar afetar pelo pouco.
Dragon Quest II avança a escala, oferece uma party, incrementa dungeons, inventa missões paralelas e confere mais fôlego à linha narrativa. A relação dos descendentes de Erdrick tem mais peso agora, os laços se tornam importantes, o backtracking faz sentido na ecologia do mundo (não apenas como preenchimento). O novo roteiro costura cenas datadas e eventos inéditos, ironizando sobre sua própria simplicidade. A coletânea consegue ressignificar pequenos gestos, convidando o jogador a se perder na cultura dos sprites, nos recados de NPCs, nos jogos de espelho entre passado e presente. É um convite claro à exploração não-óbvia — encontrar algo precioso no terreno do previsível.
E, ainda assim, há um ponto de desconforto recorrente: o medo de alterar radicalmente o texto original. As novas cenas e diálogos são sempre discretos, respeitosos, quase “vigiados” — não há risco narrativo real, não há novas subversões possíveis. Para quem deseja surpresas, pode-se sentir ausência de fôlego. Para puristas, esse “pé no freio” revela talvez o maior mérito: conservar, com alguma ambiguidade, a verdade do clássico.
O combate entre tradição e conveniência
O sistema de batalha permanece terreno de embate filosófico: preservá-lo como foi desenhado há décadas é um elogio à coragem, mas também expõe suas limitações. A cadência ritualística, os menus enxutos, o ritmo de ataque e defesa — tudo isso cria a atmosfera correta, mas não se sustenta para todos. Em Dragon Quest I, o grind é repetitivo, as batalhas testam mais paciência do que tática, e quase todo progresso depende de aceitar morrer, recomeçar e buscar o “level ideal” para sobreviver a cada nova ameaça.
A modernização ajuda: comandos de aceleração, opções de auto-battle, indicadores de fraqueza e status visual contemporâneo — tudo torna a jornada mais fácil, menos penosa. Mas é aqui que o remake revela sua maior contradição: ao facilitar a passagem, sacrifica parte da tensão. Fusos horários inteiros podem ser consumidos em batalhas que, no fundo, não mudam o destino do que já se sabe. O design favorece o paciente, mas pode entediar quem acostumou a combates estratégicos e sistemas complexos de JRPGs pós-2010.
Dragon Quest II tenta, e muitas vezes consegue, disfarçar a monotonia com party balanceada, inimigos variados, bosses de múltiplas fases e magias mais criativas. O jogo se distancia da inércia do primeiro, mas vive no limiar entre tradição e facilidade. Há evolução real — mas ela nunca corre o risco de atingir a sofisticação de um sistema de papéis ou sinergias profundas. É, finalmente, experiência de resgate: gratifica quem deseja reencontrar suas próprias cicatrizes de infância ou adolescência, mas só ecoa com força plena se a nostalgia for bem-vinda.
Expansões, qualidade de vida e as sombras do excesso de zelo
É justo elogiar o que foi acrescentado ao pacote: há incremento honesto de sidequests (principalmente em DQ2), novos bosses, micro-histórias integradas a vilarejos antigos, dungeons ampliadas e pontuais “melhorias de vida”, como saves automáticos, mapas refinados, menu rápido, estatísticas transparentes e dificuldade customizável (incluindo “Draconian” para masoquistas e modos facilitados a quem só busca absorver a história).
O próprio sistema de save é um divisor de águas: para quem cresceu com o temor de perder progresso por descuido, a implementação do quicksave e do slot de emergência permite experimentar mais, arriscar estratégias toscas ou simplesmente testar builds sem a punição extrema do NES. Por outro lado, a novidade esvazia um pouco a tensão — e para cada ganho moderno há o lamento dos puristas pela perda do artifício clássico.
Ainda em caráter elogiável: a localização ficou esmerada, mesmo com a escolha controversa de inglês arcaico (“thou, thee, -eth”), que cria sabor nostálgico fiel — mas potencialmente afasta leitores menos acostumados à densidade da língua. Os menus, por sua vez, são ágeis, visualmente agradáveis, fáceis de dominar. Aqui, sim, o HD-2D faz diferença: o que antes era bloco de texto agora é interface que convida a testar configurações, consultar equipamentos, ponderar cada passo do planejamento.
Nos gráficos, não há paralelo: o remake é sinônimo de cartão-postal animado, do reflexo de luz nos lagos ao clima das noites em dungeon. Nada parece automático; tudo mostra o labor de artistas em busca da fusão entre memória, arte e tecnologia. As animações fluem, os sprites reagem com pequenos gestos, a música acompanha cada tela. Mas a beleza, sozinha, não mascara limitações mecânicas já destacadas no combate.

Legado, ritmo e o público do agora
Ao encerrar a jornada nos mundos digitais deste remake, paira sempre o dilema: Dragon Quest I & II HD-2D Remake é, acima de tudo, uma carta a quem já ama — e só em segundo plano busca conquistar novos públicos. O respeito ao ritmo original, a aposta na estrutura enxuta, o cuidado com detalhes artísticos deixa claro que o produto é primeiro homenagem e só depois reinterpretação.
Para veteranos, revisitar vilas, dungeons e trilhas conhecidas provoca um efeito de “reencantamento tranquilo”, quase terapêutico. Cada tela é reverberação de memórias, cada boss é ritual — e o novo brilho do HD-2D só fortifica esse sentimento. Não há excesso de distração, o pacing resiste à pressa contemporânea: o mundo é pequeno, mas é grande em história; o desafio é curto, mas longo em significado emocional.
O oposto é sentido por quem vem do zero. O pacing pode parecer “travado”, a narrativa, rasa; o combate, antediluviano; e a aura reverente soa como barreira à entrada. Modernização ajuda, mas nunca soluciona o dilema do “design datado versus essência preservada”. O remake parece — por opções de qualidade de vida — tentar dialogar, mas não encontra ponto de plena convergência. Contudo, o produto não pede desculpas: faz questão de ser portal para quem quer entender o DNA do RPG japonês em sua origem, sem esconder cicatrizes ou fragilidades herdadas.
Oopsie…
Por mais brilhante e respeitosa que seja esta repaginação, é impossível ignorar — e, sinceramente, lamentar — a ausência de legendas em português. Essa exclusão sistemática, infelizmente rotineira para a franquia Dragon Quest, evidencia uma barreira que não se justifica diante do avanço global da série e do papel protagonista do Brasil e de outros países lusófonos no mercado gamer atual. Trata-se de um bloqueio cultural frustrante, que afasta novos jogadores, limita o acesso de uma geração inteira a um patrimônio histórico do JRPG e reforça a impressão de que a Square Enix ainda não reconhece o potencial de acolhimento e expansão que o idioma português representa. A decisão de manter o público brasileiro à margem do texto narrativo é contrassenso que mancha — mesmo que levemente — um projeto que se vende como celebração universal do RPG de todos os tempos. O mérito da experiência seria muito mais amplo, democrático e impactante se a língua do público local finalmente fosse tratada como prioridade, e não como nota de rodapé.
Problemas de design e o debate do resgate versus reinvenção
Dentre os tropeços, é preciso sublinhar:
- Linearidade excessiva em DQ1: O primeiro jogo sofre por simplicidade. Seu charme, sua história, seu mini-mundo são importantes como registro histórico, porém a falta de complexidade e renovação em puzzles e sistema de exploração o tornam quase mais “peça museal” do que game pleno.
- Combate monótono e grindante: Tirando bosses específicos, a batalha em DQ1 é só rotina, exigindo paciência e pouca estratégia. O auto-battle ajuda, mas não resolve a sensação de tédio. Em DQ2 melhora, mas ainda nunca desafia como deveria.
- Excesso de conveniência: Fast travel, quicksave, indicação em mapa e menus refinados tornam tudo moderno, mas também esvaziam parte da tensão e do medo do desconhecido que eram centrais ao êxito original.
- Tradução com inglês arcaico: Manter “thou, thee, -eth” cria fidelidade, mas pode alienar quem deseja experiência fluida e contemporânea. Não importa quem você é ao redor do globo, mas essa escrita aqui pelo menos, cansa.
- Falta de tradução para nós: Este porém irá matar a experiência para a maioria das pessoas que dependem de saber um inglês, e eu como atuante na área, um BOM inglês. É com muito pesar que a tradição de Dragon Quest esquecer o Brasil está se mantendo firmemente.
O que se salva — e se consagra
Mas o remake também catalisa conquistas raras:
- Visual e trilha sonora: Nada se compara à sinfonia e paleta do HD-2D. Ao revisitar vilarejos, castelos e noites estreladas, não há como não se emocionar — inclusive músicos, designers e fãs, todos reconhecem a profunda reverência à obra original.
- Party balance e boss design em DQ2: Aqui, tudo é mais sofisticado. As estratégias pedem reflexão, os bosses alternam fases, magias exigem timing. Muito do que falta no primeiro jogo, sobra no segundo.
- Acessibilidade e customização: O jogador pode decidir seu ritmo, sua dificuldade, seu nível de automatização. Puristas podem desligar funções, novatos podem acelerar. Essa maleabilidade é vitória genuína do design moderno.
- Novos conteúdos e micro-histórias: Mesmo tímidas, as adições em sidequests e personagens elevam o valor do pacote. DQ2 especialmente se firma como nuvem de possibilidades a serem exploradas por fãs, speedrunners e estudiosos do gênero.
- Valor histórico e multiplataforma: Nenhum outro remake recente trouxe dois pilares do JRPG com tal cuidado técnico, artístico e ritmo seguro de lançamento mundial.
Mito & rotina
Dragon Quest I & II HD-2D Remake não é obra para todos, nem quer ser. Assume seus limites por desejo de fazer jus à sua origem, não por omissão. Há beleza na cautela, há risco na reverência. Todo tropo datado, cada atalho, cada boss simples serve como lembrete de que o RPG japonês encontrou sentido não na complexidade, mas na capacidade de emocionar pela simplicidade.
Para veteranos, é um caminho de volta. Para curiosos, é convite à contemplação. Para quem busca desafio ou reinvenção, sobra vontade, falta surpresa.
Esta review foi possível graças à chave de análise gentilmente cedida pela Square Enix
Dragon Quest 1 & 2 HD-2D Remake
SCORE - 8.4
8.4
MUITO BOM
Temos aqui méritos artísticos, pelo resgate honesto e profundo, qualidade da trilha e coragem de não pedir desculpas pela tradição. É uma experiência madura, vibrante para quem sabe o que busca, essencial para pesquisadores do gênero, limitada para inovadores ou colecionadores de surpresas.









