Review: The Master’s Pupil é uma obra prima que ninguém está jogando

Em meio ao oceano de lançamentos que geralmente vemos por aí, vez ou outra, algo se destaca. Foi o caso da obra(prima) The Master’s Pupil, criada pelo desenvolvedor Pat Naoum.

Na história, que se passa inteiramente dentro de uma pupila, seremos carregados pelas pinturas do impressionista Claude Monet (1840-1926). Ao longo de doze estágios, conheceremos, com bastante profundidade, os trabalhos do pintor francês. E eis aqui um dos diferenciais de The Master’s Pupil: a pupila em questão é a do próprio Monet. Ou seja, conheceremos o trabalho do artista a partir da sua própria conjuntura e olhar artístico.

Se o jogador conhece um pouco mais da vida de Monet, a tendência é que o game o satisfaça ainda mais. Para quem não sabe, assim como outros inúmeros pintores, Monet sofreu com problemas oculares. Mais precisamente, a catarata, que já o afetava desde antes da Primeira Guerra Mundial.

Com isso, o artista, por conta da sua condição, radicalmente mudou suas pinturas. Antes de 1912, quando a sua catarata foi percebida a partir de documentações da época, Monet era impressionista. A imagem abaixo, chamada de The Water-Lily Pond and Bridge (1905), mostra um Monet ainda impressionista.

The Master's Pupil

Quase vinte anos depois, e já sob a condição da catarata, Monet produziu o quadro abaixo, datado de 1922. Chamada de Japanese Footbridge at Giverny, vemos um jardim a partir de borrões que fogem do estilo anterior do pintor.

Algo que abrilhanta ainda mais The Master’s Pupil, é que sua narrativa incorpora estes períodos da vida do artista. Do impressionismo ao expressionismo abstrato, que são os movimentos pelos quais Monet passa, tudo está lá.

The Master’s Pupil: O olho do especialista

Sem arrodeio algum, o jogo já começa em sua plenitude de jogabilidade. Somos colocados, assim, no controle de um ser que seria a antítese de Limbo, digamos assim. Sai, de Limbo, a figura enegrecida e entra, aqui, a figura esbranquiçada.

Controlamos algo que, permitam-se certos palpites, pode ser um borrão. Contudo, pode também ser uma lágrima. E mais: uma emoção. A emoção em movimento de Claude Monet.

Seu objetivo inicial não fica claro, porém, como outros jogos side scrollings, conhecemos o nosso caminho básico. Mesmo assim, meu primeiro impulso, embora eu não saiba precisar a razão, foi ir para a esquerda. Ao ir, fui mesmo sem a perspectiva de um chão seguro por onde caminhar.

O borrão/personagem flutuou um pouco, mesmo indo contra uma fumaça que o empurrava de volta. Após alguns metros indo para a esquerda, caí em uma espécie de fosso negro e fui trazido de volta. De volta à superfície inicial, ao fundo, ouvem-se pessoas, passos e alguns animais que fazem seus sons costumeiros.

Ao prosseguir, vou andando em cima de “raízes” verdes. Somente ao fim de The Master’s Pupil, saberemos o que são tais raízes, por sinal. Seguindo para a direita, vou me distanciando das vozes como se adentrasse no mundo de Monet.

Cores, sons, fumaças

Pela decisão de seguir em frente, sou presenteado com uma trilha sonora cintilante, doce e leve. Não ouço mais latidos, passos, vozes. Agora, ecoa um tilintar efêmero das teclas de um piano somado a um grilo que vez ou outra surge para demarcar território sonoro.

Mais à frente, dou de cara com três “tubulações” vegetais, cada uma emitindo uma fumaça colorida (azul, branca, vermelha). As fumaças coloridas, na sequência apresentada, são as cores que formam a bandeira da França. No exato momento que vejo as cores, ao fundo, volto a ouvir as vozes. Todavia, as vozes agora não são apenas vozes soltas e desconexas: são vozes francesas, de acordo com as cores vistas antes.

Ao seguir, em um momento estonteante, vejo uma pintura em três dimensões que se forma à minha frente. É um quadro de Claude Monet se perfazendo e se materializando diante de mim e do meu eu-borrão. Na imagem do quadro, alguém está pescando diante de um lago. A trilha, em comum acordo com a orquestração de sensações, logo em seguida, emite o som de um lago.

Após um pequeno quebra-cabeças a partir das tubulações, mais à frente, avisto outro quadro de Monet. Um fato curioso, e que se repete pelos estágios, é que as tubulações “sugam” minha essência, a minha cor. Sempre que preciso avançar e uma tubulação me embarreira, eu cedo minha essência/cor para ela. É como se meu borrão fosse, também, um refil de tinta.

No segundo estágio, contudo, descubro que posso mesclar a minha essência/cor para atravessar tubulações específicas. É o jogo me ensinando, de forma bastante especial, conceitos sobre a arte de pintar e suas possibilidades. Um jogral de misturas, deste ponto até o fim, abre-se para mim. Será preciso conhecer a esquemática de cores que, quando misturadas, originam uma outra.

Devaneios do olhar em The Master’s Pupil

Cada pintura vai suscitando algum devaneio. Seja com o ar, o mar ou ainda o campal e o mais puro idílico. O jogo é uma representação artística em sua mais pura forma. É uma arte — bastante contestada sobre sua condição de arte ser — em movimento homenageando uma outra, estática.

As 12 fases soam como se fossem — são, ora! — as próprias evoluções da arte de Monet. Assim como descubro que tenho outras essências e cores, potencializando a mim mesmo, sou apresentado ao oposto. Descubro também que cores fortes, quando juntas, alcançarão o sombrio artístico, me desfazendo em pó, névoa.

Por isso, em horas assim, como se fosse uma própria pintura em um museu, o jogo nos pede o óbvio: “calma”. Como é um game sobre arte, há uma série de “equações” matemáticas em relação às cores que preciso conhecer. É quando The Master’s Pupil me clama por paciência para que eu possa entender cada passo, cada cor.

A arte requer o devaneio. E não se devaneia às pressas.

E se Monet, em sua carreira como pintor, algum vez reutilizou algo pintado, como um barco, tenham a certeza que o jogo fará a reprodução disto. Nos flagraremos, a partir de certo ponto, não só adentrando em pinturas. Chegará a hora de as construirmos. Nem que para isso necessitemos arrastar objetos, partes de um quadro, etc. Estaremos vendo e aprendendo com (e ao mesmo tempo sendo) Monet.

O luto e a arte de seguir lutando

E já que somos o próprio artista, devemos também (re)viver seus ápices e as suas crises mais profundas. The Master’s Pupil, inclusive, faz tais coisas com divina maestria, pois vai nos apresentando aos adoráveis e dolorosos processos do fazer artístico… e os do viver.

E como estamos falando de uma figura como Monet, seus amores, assim como suas dores, escalonam grandiosamente. Em um sublime momento, o luto entra em cena (em quadro), para nos colocar diante da perda. A cor roxa/lilás/púrpura, atrelada à condição de luto em certas culturas, dará um tom poético e finito da existência.

Ao mesmo tempo, quase que constantemente, o jogo faz o seu borrão vibrar. A cada tubulação vencida, o personagem ergue e balança seus pequenos braços, celebrando seu avanço.

Na falta de outras palavras ou expressões, este jogo, que foi literalmente pintado à mão e sua gestação demorou 7 anos, é uma obra-prima sobre outras obras-primas.

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