Rode com seus ‘eus’ para longe do sol ou morra – Análise de The Alters

The Alters perigava não entrar em meu mundo, não entrar na minha mira, por se tratar de um jogo que supostamente seria sobre enfrentar momentos de dificuldade e escolhas árduas, tudo enraizado em suas entranhas mecânicas. E The Alters não deixa de ser isso, mas aproveitei para surfar na boa‑vontade da crítica. Enquanto me empolgo com certos momentos e planos durante sua profunda jogatina, em outros instantes tardios passo a me sentir numa solitária, encarando a mesma parede há meses.

Mas vamos dar alguns passos para trás e explicar esse jogo desde o início. Para quem não gostava do tipo de jogabilidade do estúdio/publisher 11bit Studios, talvez valha a pena dar uma chance a The Alters, pois ele possui um lado mais tátil e macro das coisas. Ele mescla um jogo mais tradicional em terceira pessoa com um gerenciamento de crise e recursos, de forma que a parte de ação compense os menus aprofundados da parte estratégica.

Jan Dolski é um sujeito de meia‑idade (e eu sei que vocês fingem respeitar quem passou dos 30 anos, adotando a estranha vibe de dizer que alguém de 40 já é “idoso”). Aliás, vamos pausar The Alters por aqui: achar que pessoas de 40 anos não servem mais ao mundo e que seus gostos e sabedoria não merecem ser levados a sério diz muito mais sobre o fracasso de quem critica do que sobre quem é criticado. Obrigado.

Jan Dolski não tinha muito a perder. Seu casamento ruído, sem prole e sem estabilidade emocional ou acadêmica, o leva a servir de desbravador espacial, já que a Ally Corp aprendeu bem com nossa atualidade — bets e IAs descaradas correm soltas na sociedade, disfarçando práticas inconstitucionais. O indivíduo desesperado poderia entrar num Round 6, mas neste universo ele também pode se candidatar a expedições incertas atrás do Rapidium.

A substância elusiva é encontrada acidentalmente pelo protagonista, após pousar num planeta completamente inabitável, que conspira para torná‑lo vítima de perigos invisíveis a cada segundo. Na queda, nenhum outro tripulante sobreviveu, embora as circunstâncias permaneçam estranhas. Ao mesmo tempo em que reconhece o desastre, ele descobre fragmentos de Rapidium fincados em cantos lúgubres desse lugar triste e vazio.

Imediatamente, o ser insignificante para a Ally Corp — aquele que mal receberia uma equipe de resgate — ganha novo valor quando os engravatados ficam sabendo da descoberta. O jogo passa a exigir que você redirecione a “roda‑gigante” que é sua estação, fugindo do sol que aniquila tudo o que toca, para sobreviver até a equipe de resgate vir colher o precioso material.

Diante dessa situação, Jan enfrenta barreiras técnicas fatais sem ajuda. Eis a solução da Ally Corp: crie clones de si mesmo, cada um com uma habilidade principal diferente — médicos, cientistas, mecânicos. Esses são os alters.

É aí que entram questões morais mais pesadas: na estranha sala da estação chamada “O Ventre”, você deve explicar à sua outra versão o que está fazendo ali, por que ela existe. Repare que não se trata de dimensões paralelas, mas de humanos com memórias fabricadas, baseadas em tangentes que o Jan original nunca escolheu na vida dele.

Isso é ilustrado de forma literal num diagrama de menu, onde o jogador escolhe pontos predefinidos da vida em que tomou decisões diferentes, moldando, entre outras coisas, sua trajetória acadêmica.

Todos os Jans tiveram seus dramas distintos, moldando caracteres diversos, com o fato de que essas memórias artificiais foram implementadas por um computador quântico no coração da roda‑gigante que você tenta rolar pela paisagem. Adivinha qual substância permite que, no Ventre, seu novo eu nasça em pouco tempo? Sim: o Rapidium. Pelo visto, essas propriedades de acelerar tudo são o grande interesse da corporação.

Roda a roda Jequiti

É com esses vários Jans Dolski que você apoia uma das mecânicas centrais do jogo: o gerenciamento social, atendendo às vontades de cada um, bem como suas necessidades biológicas.

Para isso, entra outra faceta da gameplay: a construção de salas, bastante parecida com o que vemos em Fallout Shelter, só que, desta vez, são compartimentos alocados no centro dessa curiosa roda‑gigante.

Claro, para erguer estruturas, garantir alimentação e proteção, é preciso catar recursos no planeta, onde exploramos em terceira pessoa. Ao encontrar jazidas, podemos instalar postes que transportam esses materiais até nossa estação. E, no meio disso tudo, existem perigos.

Após as 20 horas de tempo de jogo, ficar do lado de fora significa sofrer radiação progressiva e letal — o mesmo vale para os alters designados a trabalhar fora da estação. Já dentro do abrigo, dormir tarde faz você acordar tarde e, assim, aproveitar menos as horas do dia — dias estes finitos, pois o sol, um dia, alcançará seu ápice.

O modo como tudo está conectado pode enlouquecer: a sensação é de que, em algum momento, vamos nos enrolar e comprometer tudo. Contudo, esse é o charme desse tipo de jogo, especialmente os lançamentos da 11bit Studios.

Todas as ações implicam passagem de tempo. Por exemplo, minerar com suas estações instaladas em campo acelera o relógio até você soltar o botão e o grande fast forward parar. Perto das 20 horas, é hora de voltar ao abrigo e realizar tarefas como cozinhar e socializar (ou gerenciar essas atividades).

Esses sistemas são explorados gradualmente, então não há um “dump” exagerado de informações a aprender. Basicamente, trata-se de interagir com alguns sistemas básicos, que se complementam ao longo do tempo, e acompanhar a história à medida que as coisas se complicam, exigindo gerar vários “eus” para ajudar na sobrevivência.

Esse loop de acordar, repetir atividades no mesmo lugar e ver pouco avanço pode se tornar cansativo — esse será o ponto que pode impedir The Alters de merecer uma nota altíssima. A maior culpa recai sobre a navegação pelo mundo, que promete perigos quase místicos, mas raramente acende a chama de explorar esse lugar morto e triste de novo. Os mapas semiabertos oferecem atalhos desbloqueados de dentro para fora conforme sua energia e horário permitem. Por isso, o jogo pode bater numa parede dura depois de horas de jogatina;, no meu caso, isso me fez querer dar uma longa pausa antes de me sentir pronto para voltar a essa experiência imersiva.

Você também lida com dilemas morais: pensar em como a sociedade reagiria a esses clones caso retornem “sãos” à Terra. Isso pode acontecer se você não for cuidadoso e deixá‑los morrer pelo caminho.

The Alters é instigante e apresenta mecânicas que não se mostram intrusivas nem lentas de mais. Uma pena que, possivelmente devido ao escopo ambicioso, não tenha incluído uma exploração de mundo mais interessante para que a média de 20 horas de gameplay não se tornasse cansativa. Se repetição é ingrediente inerente aos games, um bom design deve minimizar essas adversidades, maximizando o engajamento em todas as frentes que uma obra pode oferecer.

THE ALTERS

SCORE - 8.3

8.3

MUITO BOM

The Alters é o jogo que aproxima não apreciadores de jogos simuladores de situações difíceis e gerenciamento de recurso oferecendo uma narrativa instigante, mas que merece descanso uma vez que a parte de exploração é mais contida e deveras pobre.

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