Em certo momento do homérico Starfield, uma missão paralela envolvia a recuperação de biossensores em formato oval. Um cientista precisava deles para verificar o estranho avanço de uma árvore, que crescia assustadoramente em um jardim.
Após recolher parte dos biossensores, restava um, que estava anteriormente em posse de uma criança. Ao encontrá-lo, ela informou que vendeu o “ovo” para alguém do setor de trocas de Nova Atlântida. Fui ao local e, por lá, a atendente do setor falou que não poderia me repassá-lo gratuitamente. Eu teria que pagar uma quantia por ele. Eram poucas horas de jogo. Com pouco dinheiro, me dei outra opção. Entrei no depósito para furtar o biossensor.
Em nome das minhas pobres finanças, fui em frente. Um segundo após coletar o item, fui forçosamente detido. Não foi uma mera abordagem e nem recebi apenas uma advertência. Fui detido e enviado para uma colônia penal em outro planeta.
Em Starfield, até este momento, eu seguia passo a passo dos meus objetivos em Jemison, planeta do sistema Alpha Centauri. O planeta tem esse nome em homenagem a Mae Jemison, primeira mulher negra a se tornar astronauta. Na enorme cidade, eu estava conversando com todos os NPCs, cumprindo alguns objetivos e melhorando meu personagem. Até este momento, o jogo já estava me cativando e a história ia, aos poucos, ganhando algumas camadas.
Apesar disso, em meio à riqueza dos altos edifícios translúcidos e o centro comercial da Nova Atlântida, há o Poço. O local, marginalizado, é alvo do sistema de exploração que a parte de cima cometia em relação à este “submundo”.
Era um prenúncio do que estava no horizonte de Starfield. Se em uma cidade existiam tantas camadas assim, outros planetas e galáxias guardavam muito mais.
O caminho até Starfield
Anunciado em 2018 juntamente com The Elders Scrolls VI (ainda sem subtítulo e data de lançamento), Genesis chegou hoje, 6. Não estranhe o nome. Genesis era o título de trabalho de Starfield, confidenciado pelo próprio Todd Howard, diretor/produtor executivo da Bethesda.
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Graças ao investimento de quase oito bilhões de dólares ao comprar a Bethesda, a Microsoft garantiu a exclusividade do jogo. Aliás, como se sabe, juntamente com o jogo de mundo aberto de ficção científica, também vieram outras pérolas da Bethesda. Entre elas, duas franquias que ajudaram a pavimentar o caminho de Starfield, como as séries The Elders Scrolls e Fallout.
Apesar do percurso feito pelas duas franquias anteriores citadas, esta nova produção possui alma própria. Não, claro, que ele não carregue certos esquemas de jogabilidade e vícios de Fallout e Elder Scrolls. Carrega.
Em relação à franquia pós-apocalíptica, a questão é outra. E além. Temporalmente, Starfield toma a decisão de avançar mais ainda que Fallout. Não é que o planeta tenha passado por crises nucleares e ainda exista, embora em frangalhos. Sem spoilers, mas este novo jogo parte de um princípio posterior. É algo após o pós-apocalipse, em resumo.
Já de The Elder Scrolls V: Skyrim, temos uma investida similar. Porém, para que este review não dê spoilers da narrativa principal, nada será revelado.
Após oito anos em desenvolvimento, a obra decolou e chegou ao seu destino final. Ao redor do globo, jogadores de Xbox, computadores e através do cloud gaming estão se aventurando com Starfield. Desde o dia 31, mais de 2 milhões de usuários, como agora sabemos, estavam jogando através do acesso antecipado. Para quem não adquiriu o jogo em early access, usuários do Game Pass certamente estão por agora no campo estelar.
Onde ninguém jamais esteve
O cineasta Alfred Hitchcock popularizou um artifício de roteiro que mudou a história do cinema: MacGuffin. O termo refere-se ao objeto/elemento que, embora precioso à história, não necessitamos saber do que se trata. Lembram da maleta que emite luz forte em Pulp Fiction? Então, é algo que importa aos personagens, pois move-os ao longo dos atos do filme para alcançar ou recuperar algo. Todavia, o MacGuffin não precisa ser um objeto. Pode ser algo abstrato: o senso de curiosidade por algo, a busca por justiça, etc.
Em Starfield, o MacGuffin é o próprio jogador. Ao mesmo tempo em que controlamos o avatar do inicialmente minerador, horizontes se abrem para nós. Ao encontrar algo ainda nos minutos iniciais, a trama do jogo começa a escalar de forma grandiosa.
Como o material de divulgação deixou claro, é possível visitar outros mundos, planetas e sistemas. Dessa forma, o jogo atiça nossa curiosidade por saber o que está adiante, seja em um planeta, seja pela galáxia.
Assim, cabe ao jogador escolher seu próprio destino. Feita a breve missão inicial, podemos ir para quase qualquer lugar. O ‘quase’ não se dá por fatores técnicos do jogo. Os impedimentos são aliados ao contexto narrativo e tecnológico do próprio mundo e do jogador.
Novas fronteiras exigem meios de transporte adequados. Portanto, será impossível se chegar em qualquer lugar de antemão. Evolua, melhore atributos do personagem, consiga vestimentas adequadas e rume ao desconhecido.
Aliás, esqueçam as falsas polêmicas de que Starfield não permite explorar um planeta inteiro. No controle do personagem, a vastidão de barreiras praticamente inexiste. Nas primeiras quarenta horas de gameplay, houve apenas um momento com “barreira”. E que não me limitava. O próprio jogo fornece escolhas ao jogador. Ao se alcançar certo ponto de um planeta, podemos avançar ou simplesmente voltar a um local anterior.
O monomito
Um simples minerador (ou mineradora, pois é possível se escolher), em um dia normal de trabalho, encontra algo inesperado. Daí, como todas as outras histórias universais, o mundo dependerá das suas escolhas. Entre a relutância diante do desconhecido e a curiosidade por respostas, seguiremos na jornada.
O monomito (também conhecido por Jornada do Herói) é uma das bases narrativas do antropólogo e escritor Joseph Campbell. O monomito surge no livro O Herói de Mil Faces, de 1949. Dividido em três seções, ele contempla 12 passos que, em geral, atravessam a ficção. Seja nos jogos, na literatura ou no audiovisual, a jornada do herói sempre percorreu tais etapas. Em Starfield, que abre o seu mundo para que o exploremos, constantemente estamos transitando entre os passos.
(tudo que se refere ao monomito será mais profundamente abordado em um futuro texto sobre a relação do jogo com a Jornada do Herói).
A criação de personagem em Starfield
A cada momento, no jogo, estaremos lidando com escolhas. Desde o sistema de criação de personagem com possibilidades quase infinitas de modelagem, escolhas precisam ser feitas. E após a missão inicial, como dito anteriormente, o jogo abre-se ainda mais. Por isso, ao jogador mais experiente, a Bethesda deixou elementos de customização que já são velhos conhecidos dos jogadores. Logo de cara, precisamos escolher um histórico para o personagem.
Em meu caso, foi Vida no Campo, que garante um background narrativo específico ao personagem. Mesmo caso com as outras 20 opções de histórico.
Além disso, temos os perks/atributos que diferenciarão ainda mais o personagem criado. Para a minha jornada, por exemplo, escolhi os perks de Família Unida, Ícone Adorado e Cabeça a Prêmio. Cada um, vale dizer, traz uma vantagem e uma desvantagem. O que dá um peso enorme à escolha que for feita.
Para ficar apenas em um dos três atributos, detalhemos um deles. Em meu caso, com Família Unida, poderei ter um background narrativo a mais, pois meu personagem teve pai e mãe. Contudo, é preciso se ficar enviando certa quantia financeira de tempos em tempos para eles. Dentre desta situação, a coisa se complica um pouco mais porque eles vivem em um luxuoso apartamento em Nova Atlântida.
Ao mesmo tempo, o jogo permite com que você encerre estes pagamentos a qualquer momento. Ocasionalmente, inclusive, surgem diálogos entre vocês três sugerindo que seu pai e mãe morem em um lugar mais barato. Como não cortei o envio do dinheiro, não sei se eles seguiriam vivendo no luxuoso apartamento com o fim da mesada. É (não) pagar para ver…
A evolução
Além dos atributos, temos também a tradicional árvore de habilidades. Em Starfield, as opções são descabidamente imensas. Temos cinco “raízes” na árvore: Físico, Social, Combate, Ciência e Técnico.
Com cerca de 16 habilidades por tema/raiz, são 82 opções de melhorias para o personagem e aquilo que o envolve. Como cada escolha importa ao progresso, o jogador se flagrará bastante em dúvida sobre qual habilidade irá optar. O que é ótimo, por sinal.
Além disso, as habilidades possuem evoluções dentro delas, o que só aumenta ainda mais a gama de opções. Assim, se eu quero abrir trancas e cofres, preciso evoluir o meu digihack (o lockpick do jogo). Porém, com o avançar da narrativa, veremos que há níveis nas trancas/cofres e computadores. Com isso, será preciso se evoluir o digihack em outros níveis (básico, avançado, especialista, mestre, etc).
Como Starfield é um jogo essencialmente sobre a curiosidade e a exploração, é bastante divertido negociar cada ponto consigo mesmo.
O combate visceral e a trilha sublime
Cada corredor, sala, prédio, caverna, bunker, posto avançado, floresta, deserto, planeta e sistema impõem-se diante do jogador. Como em outros jogos da Bethesda, há a possibilidade de se atacar com as mãos e armas brancas. Mesmo assim, é o gunplay que se destaca.
É difícil, dada à intensidade com a qual muitas vezes adentramos certos espaços do jogo, não haver fortes emoções. Em muitos momentos, seja de maneira solo ou ao lado dos companions do game, o combate reserva deslumbrantes acontecimentos.
Na intensidade dos combates, o jogo sempre forçará o jogador a observar cada aspecto. Das munições à respiração, dos novos inimigos ao itens pelo chão, os 360º da sua visão serão exigidos. Seja você um jogador furtivo ou ofensivo ao extremo, Starfield vai requerer toda a sua atenção ao campo/sala de batalha.
Por outro lado, é ineficaz falar no intenso combate sem que este não venha acompanhado de algo essencial: a trilha-sonora que ecoa o caráter épico que se tenta imprimir. Portanto, seja em combate ou no suspense que antecede um, Starfield se vale das valorosas 79 músicas de sua trilha-sonora. Composta por Inon Zur, vencedor do EMMY e três vezes indicado ao BAFTA, a trilha contribui de forma descomunal na imersão do jogador.
Como sugestão, ouça Peaks and Valleys, cuja aura move-se entre a série Além da Imaginação e a trilha do filme Um Corpo Que Cai.
Os biomas e a direção de arte
Muito se propagou sobre os mil planetas que podemos visitar. Em resumo: é tudo verdade! É possível se deslocar para qualquer planeta, habitável ou não.
Um bom alerta para você que aprecia guardar fotos e vídeos durante suas gameplays: se preparem para o encantamento. Starfield é um desfile colossal dos mais diversos biomas.
A fauna, a flora, as instalações, os prédios, monumentos e demais estruturas são vivas e ricas em diversidade.
E apesar de pode haver certo receio em se esbarrar com estruturas e salas iguais, adianto que é algo raro. Somente depois das quarenta horas de jogo, fui dar de cara com uma sala cujo design remetia à outra vista muitas horas antes.
Some, à diversidade de biomas, o quão incrível é a direção de arte do game. E não é preciso se ir muito longe para atestar tais fatores. Basta se entrar em um quarto e veremos o nível de detalhamento da direção de arte de Starfield.
Vimos o espaço, um ambiente planetário, uma sala e um item em tamanho maior. Agora, vejamos também algo em sua forma miniaturizada. Starfield ainda nos premia com um modelo 3D de todos os itens do jogo.
Podem apostar que o exímio gráfico, técnico e artístico de Starfield impressionará até mesmo jogadores veteranos de décadas.
Starfield é a magnum opus da Bethesda?
Não é um jogo perfeito. Ainda há problemas que destacam-se. Dos que pude perceber de forma mais abrangente, são os que envolvem os diálogos. Embora uns sejam mais raros, incomodam ainda assim.
Um dos problemas envolve o posicionamento/plano da câmera nos diálogos. Foi incomum, mas, aconteceu. O mais problemático, no entanto, são os que envolvem a não-movimentação de personagens em diálogos em que o NPC está de costas ou de lado. Se o NPC não estiver de frente, o máximo que ele fará será (tentar) virar a cabeça para o jogador. O resultado nem sempre será bonito de se ver.
Felizmente, diante da vastidão de outros problemas que o jogo poderia ter, estes são problemas menores. Um patch de atualização certamente chegará e corrigirá estes e outros problemas.
Acima de tudo, temos um jogo caprichado em praticamente tudo que se propõe a fazer. No mais, a obra resguarda ainda algumas belas surpresas que o jogador descobrirá somente após o jogo ser finalizado.
Se Starfield é a magnum opus (obra prima) da Bethesda, talvez ainda seja cedo para dizer. Será necessário se degustar a obra por mais tempo. Grandes jogos, como todo e qualquer produto cultural, resistem ao tempo. A impressão que tenho, em outras palavras, é que Starfield veio para ficar e fincar. Ficar marcado nos corações e mentes de milhões de jogadores enquanto finca seu espaço na concorrida indústria dos videogames.
Pois bem, aqueçam os motores, liguem as turbinas e afastem-se da pista de voo. Um dos mais esperados jogos de todos os tempos pede passagem.