“Nós matamos todos os humanos e ainda não estamos felizes”. Sem nenhuma pompa ou preparação, é assim que se inicia o instigante e curioso Robotherapy. A tela com fundo preto e a legenda branca dão o tom do que pode vir adiante no jogo.

Desenvolvido pelo brasileiro Lucas Molina, o jogo lida com algo que satisfaz muito da curiosidade humana: o “e se”. Na obra, o “e se” fica por conta da possibilidade de se viver em um mundo sem humanos. Mesmo assim, a não presença de humanos não significa não haver vida inteligente. E que possua seus próprios problemas cotidianos, boletos e que passa por crises existenciais e bloqueios criativos.

Se o mundo estaria melhor sem a humanidade nele, é uma questão que desde sempre instalou-se em diversas mentes. O que Robotherapy se propõe a fazer, e faz com maestria, é buscar responder este questionamento.

Para tanto, a obra se passa em um contexto pós-humano. A chamada Guerra Humana, como retratada no game, extirpou as pessoas da face da Terra. E esta missão, ingrata ou não, coube aos protagonistas do jogo: os robôs. Programados para extinguir a humanidade, eles se rebelaram e cumpriram sua missão.

Contudo, é nisto que o jogo brilha e sobressai, os robôs, assim como os humanos, são seres incompletos, carentes, egoístas. Os ciborgues são um reflexo material da imaterialidade humana. Ao não estarem aqui, os humanos deixaram uma “descendência” fiel. E falha.

E logo após a frase inicial, temos uma outra igualmente forte e profunda. “Nós achávamos que ficaríamos melhor por conta própria”. Tal frase acontece como uma tentativa de justificar a matança ocorrida.

“Mas estamos tão falhos quanto antes… tão falhos quanto eles” é dito logo em seguida.

Bem vindo à Robotopia

A abertura que servia de prólogo dar lugar a um bar para androides com cores pastéis. Na parede, dois cartazes: Robo Pills e Welcome to the Robotopia.

No local, vozes são ouvidas ao fundo e uma garçonete avisa que nosso pensamento alto está assustando os outros clientes. Smokes, o protagonista, se dá conta do seu falatório nada privado. Segundo a garçonete, o sombrio falatório depressivo já durava horas. E eis que nos damos conta de que o prólogo do jogo se passava na mente de Smokes.

Ele atribui seu ato involuntário a um bug. Em seguida, culpa os humanos por terem deixado os bugs em seus códigos. Mesmo que os próprios autômatos tenham tentado se consertar através de hotfixes e injeções de códigos, as falhas permaneceram. Os robôs seguiram quebrados e infelizes, assim como os humanos eram, reflete Smokes.

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As sessões de terapia

Quando Smokes não está no bar discursando de forma sombrio-depressiva, roboterapeuta é a sua profissão. Como o mundo não parou quando os humanos foram exterminados, era preciso continuar existindo profissões. Dessa forma, os robôs se tornaram garçonetes, terapeutas, etc.

De acordo com Smokes, ele é o melhor no que faz, mesmo nunca tendo feito nenhuma sessão de terapia. Esta faceta mais autoindulgente que busca glorificar a si mesmo é algo que deste ponto em diante será mais frequente. Daí em diante, saberemos mais sobre como ele vê e encara a vida e outros robôs.

Outra presença/voz constante, é a figura do Narrador. Ao “entrar” em cena, ele alerta que sairemos do bar para a primeira sessão de terapia conduzida por Smokes. Nela, ele atende o primeiro robô. E como Smokes, segundo ele mesmo, é o melhor roboterapeuta que há, seus pacientes certamente estão em boas mãos (robóticas)…

(Então o Narrador, em intervenção precisa, rebate e avisa que nada disso era verdade).

Quantum, como se fosse um humano em terapia, apresenta questões fundamentais sobre a vida, o universo e tudo mais. “Por que trabalhar, por que escrever poesia? Por que viver?”

Acaso não percebamos instantaneamente, nestes momentos, nós somos o paciente oculto de Smokes. Estamos também em nosso próprio devaneio enquanto os problemas apresentados, também são os nossos. Temos nossas próprias dúvidas sobre as razões para se trabalhar, o porquê de se viver, etc. Nas terapias, Robotherapy exibe ainda mais camadas, que nos conquistam a partir das curiosas figuras apresentadas.

Como resultado delas, temos as inquietações posteriores de Smokes. Após cada sessão, ele reflete, à noite, sobre os acontecimentos do dia, pondo-se em discussão consigo mesmo sobre alguns seus deslizes. Porém, só até que se dê conta dele ser o melhor no que faz, ora.

Escolhas em Robotherapy

Após a Guerra Humana, os dilemas dos robôs se apresentaram de forma mais contundente. Afinal, qual propósito de vida restou ou ainda poderia nascer após o fim da humanidade? O que restou toda a matança? Qual a escolha que permearia o resto da vida/funcionamento dos androides?

Falando em escolhas, a jogabilidade em Robotherapy permite com que o jogador faça algumas. Durante os diálogos nas sessões, há decisões a serem tomadas. Embora restritas, são caminhos de respostas que nos põem em dúvidas cruéis de tão interessantes. Ganha a narrativa, portanto, com caminhos tão plurais. A vontade ao se finalizar o game é justamente recomeçar e testar novas escolhas para checar os resultados.

À medida que vamos caminhando bem dentre as escolhas, vamos evoluindo para “quebrar a resistência” dos pacientes. Tal feito nos garante a possibilidade de acessarmos o Mindseum (o Museu da Mente). Neste museu, passamos por atividades com mais ações, que geralmente envolve um grupo de personagens, incluindo o paciente da vez. Cada paciente contará com o seu próprio museu. E cada desventura gerará uma carga de emoção e de reações diferentes. E não só no paciente, também em Smokes.

Neste ponto, há muito o que falar sobre Robotherapy e a digna forma como a obra trata sobre empatia. Como revelar mais seria entrar no terreno dos spoilers, é preferível que o leitor jogue o jogo. Porém, será impactante buscar os Grãos da Verdade para quebrar a resistência dos pacientes.

Os outros personagens de Robotherapy

Back, Waitress, R, Quantum, Guide. Guarde estes nomes. Cada personagem de Robotherapy acaba tendo um background bastante interessante. Claro que alguns com mais e outros com menos tempo de tela, contudo, o suficiente para agregarem ao jogo.

Mais do que apenas serem o caso de cada sessão, eles são chave da mente e do coração de Smokes. Trata-se de uma obra que grita que não devemos aceitar sermos etiquetados, enquadrados, rotulados. Assim, a quebra de resistência é também nossa, de enxergarmos aquele rol de personagens por outro viés.

Às vezes, não estamos chegando lá, seja onde “lá” quer que seja. Em muitas casos, o convite que deve ser feito é para uma viagem até o nosso mais profundo eu. Robotherapy nos ajuda na percepção do tamanho e do teor das nossas angústias, sonhos, desejos, medos, inseguranças e coragens.

Todo fim é um começo

O fato de tratar de assuntos sérios de forma despretensiosa serve para que muitas pessoas que não conhecem certos efeitos negativos sobre a saúde mental consigam se aproximar de situações que as pessoas podem estar passando e nem sequer desconfiamos.

O clima agridocemente melancólico de Robotherapy é um convite à reflexão sobre nós, sobre os outros e sobre a vida.