
Toda vez que o desejo de jogar xadrez contra mim mesmo aflora, lembro que existem opções muito além do tradicional tabuleiro preto-e-branco. Jogos estratégicos em turno, especialmente aqueles moldados sob tabuleiros virtuais, podem ser ainda mais profundos—pois, além do raciocínio tático, oferecem narrativas poderosas que vão muito além das peças movidas. É nesse contexto que surge Final Fantasy Tactics como referência eterna, agora repaginado via o remaster The Ivalice Chronicles.
A trajetória deste remaster, no entanto, não foi simples. A equipe responsável teve que realizar um verdadeiro trabalho de arqueologia digital, já que parte significativa do material original se perdeu para a posteridade—a ausência de políticas de preservação de dados nos videogames dos anos 90 e início dos 2000 é notória, e Final Fantasy Tactics não escapou. O processo de reconstrução foi meticuloso, buscando manter as intenções e atmosferas do clássico. O resultado, felizmente, transparece respeito genuíno ao legado do jogo, com escolhas que mais preservam do que alteram.

Entretanto, é impossível não lamentar que esse respeito não tenha se estendido ao público brasileiro—mais uma vez, ficamos de fora quando o assunto é a disponibilização de legendas em português. E aqui, o problema vai além do incômodo habitual: FFT é um jogo com linguagem densa, cheia de frases arcaicas, jargão político e nuances históricas. Até quem domina o inglês pode se perder no emaranhado de conversas e documentos, o que transforma a ausência da localização em uma barreira séria para a fruição da rica história. É uma calamidade agravada, principalmente porque a narrativa exige leitura atenta e compreensão detalhada da trama e de seus conflitos.
A Nova Roupa da Velha Ivalice
A evolução gráfica é facilmente notada desde o menu inicial. Os sprites clássicos são agora nítidos, com animações específicas em diversas situações, uma graça, conferindo aos personagens uma expressividade inédita—longe dos “polígonos tremidos” do PS1. Os cenários ganharam camadas de detalhamento antes impossíveis, com estruturas firmes, coloridas e cheias de vida. Essa atualização não altera o estilo visual icônico da série, mas poliu as arestas para entregar uma apresentação moderna sem trair suas origens. Em outras palavras, fugimos dos polígonos tremidos de PlayStation que podem ficar de lado para alguma outra hora nostálgica.
Antes inexistente, agora a inserção de dublagem é um verdadeiro molho de imersão. O remaster traz um elenco que compreende o potencial dramático dos videogames—os diálogos carregam emoção, postura e ritmo adequados para um épico à moda shakespeariana. O resultado é uma experiência muito mais engajante; sentimentos antes sugeridos só pela escrita agora são vividos em voz, com interpretações marcantes de personagens como Ramza, Delita e tantos outros. Não é apenas um recurso decorativo, mas uma camada que aprofunda o contexto emocional da trama. A direção do elenco evita exageros: a entrega é sóbria, respeitosa e, às vezes, surpreendentemente sofisticada.
Surpreendentemente, o script passou por ajustes respeitosos para acomodar a inclusão da voz, facilitando o entendimento sem sacrificar a riqueza literária da história. O trabalho de adaptação, felizmente, conseguiu equilibrar a clássica densidade da narrativa com um ritmo mais fluido, necessário para suportar cenas de batalha entremeadas por conversações intensas.

Narrativa: O Excesso (e a Maestria) do Detalhe
O coração do jogo continua sendo sua narrativa política, e aqui talvez resida tanto sua principal virtude quanto seu maior entrave. Final Fantasy Tactics The Ivalice Chronicles é uma tempestade de nomes, locais, linhagens, revoluções, traidores e eventos históricos fictícios, despejados sobre o jogador com a naturalidade de uma enciclopédia medieval. Logo nas primeiras horas, a quantidade de informações pode parecer esmagadora (“overwhelming” é a palavra certeira) e demanda atenção redobrada para não se perder nas múltiplas tramas paralelas e nas motivações muitas vezes questionáveis dos personagens. Dependendo de sua personalidade como jogador, isso pode até ser um ponto negativo.
A sensação é de estar diante de um grande romance político—conspiradores, reinos rivais, famílias emblemáticas e uma sequência de reviravoltas difíceis de acompanhar se absorvidas todas de uma vez. Felizmente, o remaster traz ferramentas para ajudar: um codex ampliado, enciclopédia viva de personagens, locais e artefatos, e até um “State of the Realm” gráfico para visualizar o movimento das guerras e eventos num mapa interativo. Ainda assim, a recomendação mais sensata continua sendo seguir adiante com calma, confiar no fio condutor do roteiro e resistir à tentação de devorar todo material de apoio de uma só vez. A digestão lenta é parte do prazer.
Me lembra demais o trabalho feito em Final Fantasy XVI, mas sinto que naquele era mais fácil assimilar, já que o jogo contava com exploração e assim, por sua vez, a assimilação de pessoas e lugares com mais naturalidade. Aliás, isso é algo que eu sempre quis em um jogo como Final Fantasy Tactics e somente foi atendido para mim em Mario + Rabbids (mesmo sendo uma exploração tão suave).

Uma Campanha de Vozes e Escolhas
O enredo segue Ramza Beoulve e seu amigo Delita, tentando encontrar um senso de justiça em meio a uma guerra civil entre nobrezas e religiões. A complexidade moral, a crítica social e as reviravoltas são amplificadas com o novo script e a dublagem, tornando o drama não apenas denso, mas profundamente humano. Você poderia dizer que, os japoneses quando resolvem escrever algo que tange tanto políticas externas, soa até estranho de tão incomum – ao menos em games. Mas sempre gostei dessas tentativas.
Inúmeras decisões e combates são costurados com diálogos e eventos dinâmicos, fazendo com que cada etapa do jogo soe orgânica. O ritmo pode ser intenso para quem se apega em entender cada detalhe, mas é possível (e até aconselhável) confiar na narrativa principal para absorver o essencial e, só depois, mergulhar nos pormenores do lore.
Jogabilidade Moderna no Velho Tabuleiro
No quesito gameplay, Final Fantasy Tactics é um xadrez virtual com camadas de profundidade poucas vezes igualadas. O tabuleiro 3D, agora com visual renovado, segue fiel à proposta original: o posicionamento tático, o uso dos relevos, agua, paredes, todos os elementos do terreno são, mais do que nunca, decisivos. Os combates acontecem em pequena escala—quatro ou cinco membros do seu lado, talvez um ou dois convidados temporários, enfrentando tropas inimigas muito bem organizadas. Cada movimento deve ser milimetricamente planejado, já que terminar um turno apontando para o lado errado pode significar uma morte prematura. Uma só batalha satisfaz como uma barra de cereal no começo do dia, exatamente como uma boa partida de xadrez, demorada que só ela. Ainda assim, nada impede de você comprar a caixa inteira de barrinhas.
A flexibilidade do sistema de classes permanece impar. É um dos pontos altos do remaster, com liberdade para experimentar combinações: cada personagem pode juntar classes principais, habilidades passivas, ataques especiais e skills de movimento quase sem limitações. Encontrar “combinações quebradas” é parte do charme, mantendo interessantes até as batalhas mais convencionais.
Quem sofre com fracassos pode agradecer a inclusão de auto-save frequente e vários ajustes de qualidade de vida, como avanço acelerado dos turnos, menus objetivos e informações estratégicas mais claras. No entanto, a dificuldade não se perdeu: está lá para desafiar veteranos, mas com modos alternativos abertos para novatos ou jogadores mais interessados em aproveitar a história sem tanto stress.
A Música do Confronto
É exatamente aqui que a minha nostalgia salta do túmulo e vem a vida. A trilha de Hitoshi Sakimoto e Masaharu Iwata foi remasterizada com carinho, deixando as batalhas ainda mais tensas e memoráveis. Os temas de guerra, tensão e nostalgia são realçados por novos arranjos limpos e poderosos. Os efeitos sonoros respondem bem aos novos gráficos, sem perder o molho característico dos ataques no tabuleiro.
Pontos de Atrito
Nem tudo, porém, é absolutamente irretocável. Persistem pequenos desequilíbrios herdados do original: demorando bastante para liberar classes avançadas, enquanto personagens especiais (recrutados mais tarde) podem desbalancear batalhas com suas habilidades superiores. Para alguns, o ritmo das batalhas táticas pode soar lento, mesmo com fast-forward habilitado. E a ausência da localização em português é uma lacuna injustificável, especialmente para um relançamento de porte internacional, ainda mais em uma franquia consagrada como Final Fantasy.
Além dos já mencionados codex e enciclopédias, o remaster traz modos acessíveis (como o “Squire” para quem busca um desafio mais leve), interface modernizada e menus inteligentes que reduzem o trabalho braçal de gerenciamento do exército. São detalhes importantes, principalmente para quem se sentia perdido entre páginas de opções do clássico de 1997.
Final Fantasy Tactics The Ivalice Chronicles emana respeito por sua história e por fãs antigos—mas falha ao não se abrir completamente a novos públicos por conta da localização. É uma obra-prima renovada, cheia de qualidades técnicas, narrativas e artísticas, que só não chega mais longe por insistir em barreiras antigas. O equilíbrio entre nostalgia e atualização é delicado e, no geral, bem alcançado.
Em suma, jogar Final Fantasy Tactics The Ivalice Chronicles é um convite a um xadrez complexo, teatral, onde cada partida é permeada por escolhas difíceis e tramas densas. A experiência foi elevada por gráficos atualizados, sprites cativantes, estrutura narrativa brilhante e, principalmente, um trabalho de voz que dignifica cada linha de diálogo.
É um remaster que, apesar de pequenas limitações contemporâneas e uma barreira linguística agravante para lusófonos, merece ser vivido de maneira cuidadosa e lenta, sem pressa de dominar cada convulsão da política de Ivalice de uma só vez. Se o original já era um marco na história dos RPGs táticos, The Ivalice Chronicles tem tudo para repetir esse feito como a versão definitiva — uma porta de entrada renovada para quem deseja viver uma história de guerra, poder e escolhas no tabuleiro mais dramático do universo dos videogames.
Esta análise foi possível graças ao código fornecido gentilmente pela Square Enix.
Final Fantasy Tactics: The Ivalice Chronicles
SCORE - 8.4
8.4
MUITO BOM
Liberto do console que vira de lado que não é um PS5, também do PSP e dos emuladores, Final Fantasy Tactics The Ivalice Chronicles vai a quase todos os públicos, exceto aqueles que não possuem um inglês avançado para curtir 100% deste clássico.

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