Mesmo sendo um jogo imerso na temática medieval, que muitas vezes me faz revirar os olhos devido à sua saturação, o intrincado design do jogo e a jogabilidade ofuscam qualquer tentativa de torná-lo convencional o suficiente. Infelizmente, isso poderia levar-nos a compará-lo com outros jogos e nos deixar cansados – mas não.

Hideaki Itsuno é uma figura marcante na Capcom. Responsável pela direção de vários jogos de luta da Capcom nos anos 90 e logo depois, Power Stone, Devil May Cry 2 e 4. Olhando por cima desses jogos, podemos tirar a sensação de que em comum, mesmo um deles sendo Devil May Cry 2, os títulos possuem uma visão que não se aquieta em permanecer no lugar que está. Power Stone, por exemplo, é uma franquia de luta bastante diferente do que estamos acostumados a ver até hoje. Em 2012 ele lidera um projeto que esteve no coração de vários jogadores, mas não no bolso da Capcom. Isso fez com que a franquia fosse arquivada, somente lembrada em forma de remasterização na oitava geração e um relançamento no Nintendo Switch também.

Hoje, os envolvidos afirmam que estão fazendo com Dragon’s Dogma como franquia aquilo que não conseguiram realizar em 2012, principalmente por questões técnicas. Nem tudo o que vemos como candidato a explorar os circuitos de uma máquina está relacionado ao visual. A programação de inteligência artificial no comportamento de personagens não jogáveis em um jogo ainda é uma questão complicada e nem todos os estúdios investem o tempo necessário para otimizá-las.

Entra Dragon’s Dogma 2, que aos olhos dos leigos na série agora parece ser o mesmo jogo, mas os ajustes nos detalhes fazem toda a diferença. Tanto é que Dragon’s Dogma 2 é uma realização do que queriam fazer há mais de 10 anos, que na tela de título do jogo, não temos nenhum numeral na arte.

Neste artigo, vamos evitar adentrar muito no campo da rolagem secreta dos dados, das mecânicas de armas, escudos e poderes. Há algo muito mais rico abaixo desses lençóis, e não vamos perder tempo discorrendo sobre coisas que já encontramos com frequência em outros jogos. Dragon’s Dogma é corajoso e mostra muitas características que já deveriam ter sido implementadas nos jogos. Em vez disso, estamos presos em um mar cercado de jogos que se repetem constantemente, com as mesmas mecânicas e resultados cansativos no final

O loop de gameplay básico do jogo é familiar; ele se diferencia na execução. Você ainda vai pegar missões, ir até os locais entregar itens, mensagens ou derrotar alguém. Em cada um desses pontos, posso citar maneiras diferenciais de execução. E se, ao entregar uma mensagem, você não encontrar o destinatário onde esperava? E se o local de destino for apenas uma investigação? Pior ainda, e se você estiver indo para um lugar desconhecido, sem certeza do que fazer por lá? Nada é garantido, e coisas fora do planejado podem acontecer e servir como resultado, mas a parte mais importante deste jogo é a jornada. Muito mais do que a narrativa, números, etc. Mais sobre isso, mais adiante.

Uma das melhores formas de demonstrar a ambição velada do jogo é quando resolvemos falar dos NPCs: suas rotinas, seus começos e seus fins. Imagine um mundo, cidades com densidade semelhante a The Witcher 3, só que cada habitante possui um nome e uma rotina diária. Todos podem morrer atingidos por inimigos ou por alguma doença que os mataram depois de uma quest mal sucedida, por exemplo. Muitos possuem suas próprias casas, outros vivem por aí. Após morrerem, cada cadáver será depositado no necrotério da cidade onde terão a chance de serem revividos. Assim, quem sabe você revive a possibilidade de novas quests e novas descobertas? Quem sabe? Essa é a magia.

Essas convenções megalomaníacas acabam criando consequências profundas no game design. Essa pequena decisão de não dar destaque a nenhum NPC, com setas ou direções a ele, já cria a sensação de que qualquer canto de uma cidade ou estrada pode abrigar centenas de side quests em pessoas tão comuns quanto um NPC aleatório de GTA parece. Para o gosto de uns, isso será um deleite, mas para outros, não. Para esse segundo tipo de pessoa, o jogo torce o nariz, esperando que as amarras das convenções dos games sejam afrouxadas um tanto, permitindo que seja plausível a longa jornada a pé, já que o foco são as coisas no caminho e não as coisas que serão resolvidas ao final dele. Então, centenas de portas, cantos e casas estarão lá, só por estarem, por composição, e não por importância mecânica, tudo isso para contribuir na afirmação de que o mundo não gira em torno de você. Ironicamente, este, no fim das contas, é só mais um jogo sobre “O Escolhido”.

Dragon’s Dogma 2 possui várias qualidades, mas a maior delas é ter a coragem de dizer não à indústria e propor-se a fazer as coisas de forma diferente, causando espanto em quem foi criado com videogames dos anos 2000 para cá. Não teremos laços frouxos, propositalmente amarrados de forma tosca, esperando para serem desfeitos e oferecerem seu conteúdo, seu presente ao jogador. Preguiça não será uma palavra bem aceita no dicionário deste jogo da Capcom, mas isso não tem nada a ver com o nível de desafio, que achei que é bom o suficiente para não ser frustrante. Dado esse fato, minha preferência por jogos que requerem algo a mais do jogador vai para a franquia Dragon’s Dogma em primeiro lugar, se eu tivesse que escolher entre ela e os jogos da From Software, por exemplo.

Uma parcela intrigante, viciante e animadora dos jogos de sobrevivência e criação são as pequenas aventuras orgânicas montadas momentaneamente, como areias ao vento formando dunas antes que você perceba. Talvez uma das palavras que defina Dragon’s Dogma 2 seja “organicidade”. Enfiar-se em um lugar medonho, desconhecido e sem certeza de como irá sair, ou passar por ele será uma dádiva do jogo, é o pico do que se espera de um jogo de mundo aberto e pouquíssimos o oferecem. Ao mesmo tempo, o mapa que não quer ser simples na consulta é apenas um suporte, e não uma dependência. Entre muitas idas e vindas, acabou sendo melhor para mim mesmo decorar os caminhos das cercanias, tal como na vida real. Isso era algo muito presente também no complexo mapa de Red Dead Redemption II, e os produtores de DD2 não escondem suas influências em vários âmbitos.

Mais uma decisão acertada que contribui para a delicada composição desta obra é a engine empregada. A RE Engine tem se provado uma obra que deverá render bonificações vitalícias a seus criadores, tamanho foi o acerto nessa criação. Em Dragon’s Dogma 2, talvez a maior contribuição, na minha opinião, não seja apenas no criador de personagens, mas também na aplicação dos visuais de cada mínimo NPC do mundo. A maioria parece ter sido montada com atenção. Você sabe, o mundo real é feito de rostos e rostos, e vem de mim uma preguiça acentuada com jogos que caracterizam seres humanos como criaturas sempre belas, sempre rostos que estampariam filmes de Hollywood e séries da Netflix. Eu diria que sinto isso vindo de 95% dos jogos não-realistas e 80% dos jogos realistas. Portanto, a empatia (ou o oposto dela) fica mais fácil de minar no jogador. Não há coisa mais detestável para um roteirista de jogos do que perceber que seu texto é recebido com indiferença pelo público (isso quando não estão apenas cumprindo tarefas como qualquer produto fabricado em série).

Toda essa preocupação gráfica com os personagens repousa como uma luva no sistema de peões (os pawns) do jogo. Sua party no total pode ter até 4 jogadores: Um deles é o seu parceiro para a vida, criado por você. Os outros dois serão personagens que você “contrata” pelo mundo. Eles, por sua vez, são personagens na verdade, que foram criados por outros jogadores (ou aqueles NPCs criados pela Capcom mesmo). São os “parceiros para a vida” de outros jogadores. Esses parceiros aprendem suas dinâmicas de grupo, mas também possuem uma personalidade predefinida (que pode ser moldada mediante compra de alguns itens). Além disso, cada um terá seu próprio ranking de level, classe e inventário. Imagine que existe uma mecânica em que o “parceiro para a vida” de alguém poderá entrar no segundo ou terceiro “slot” de sua party.

Em Dragon’s Dogma 2, nunca vamos interagir diretamente com outro jogador online. Serão apenas esses avatares que podem ser emprestados, e através deles você poderá colocar nos inventários alguns presentes para dar para o jogador assim que o peão voltar para a pessoa. Isso, sem falar nas missões que você pode criar e estabelecer para um peão e pedir que a pessoa que pegou emprestado o personagem, cumprir essas missões em troca de dinheiro ou algum item a escolha de quem montou a missão.

Embora o jogo pareça intimidador, como eu disse anteriormente, ele é muito mais leniente do que, digamos, um Dark Souls. Na verdade, ele se mistura muito mais com um Monster Hunter, uma pitada de bons controles à la Capcom arcade e uma pequena parte de Souls vem dos temas medievais, um mundo vagamente pessimista, com a exploração de Elden Ring ou mesmo Breath of the Wild (mais alinhado com este último por possuir uma mobilidade mais flexível). Existe um item que irá reviver o personagem morto em batalha, que é como um continue, porém o sistema certifica de que faz o auto save a todo tempo, principalmente antes dos confrontos.

Falando em confrontos, a variedade de inimigos se faz tímida, e vai se abrindo lentamente, deixando no ar um gostinho de que o mundo poderia ficar ainda mais rico se trouxesse uma gama maior deles, em vez de nos oferecer o ogro nº23 para derrotar. Outro ponto que este título carrega do primeiro é a relação que temos com águas profundas, uma forma de controlar os limites no level design, para que o jogador tenha mais trabalho, e tendo mais trabalho, tenha mais diversão. Só que especificamente para a água, eu acho que poderíamos trabalhar com outras formas de impor esses limites. Esses limites são legais e importantes porque se alguém, ou você mesmo, derrubou uma ponte, não poderá passar pelo rio fundo. Então você terá que traçar outra rota para chegar a outro lado. Isso logo lhe chama para outra aventura, provavelmente uma aventura dentro de outra já existente. Só que neste jogo, ao entrar na parte mais profunda de uma água, a vítima começa a ser consumida por um monstro de tentáculos, uma praga, um fenômeno que assola o mundo. O maior problema de todos é que é preciso muito cuidado para que a vítima não seja os seus peões. Se a “inteligência” artificial resolver colocar os pés na parte mais funda acidentalmente, aquele personagem praticamente morre e retorna para o mundo do qual veio, dando um trabalho enorme ao jogador caso ele pense em tê-lo de volta no grupo. Os itens que ele carregava também vão embora, mas talvez a parte mais frustrante é perder de forma estúpida um personagem no qual você já tinha um vínculo afetivo como jogador.

Está na base de Dragon’s Dogma como franquia que o trajeto é a parte mais importante de sua gameplay. Logo, formas de viagem rápida são evitadas expressamente. Isso não significa que elas não existam, mas dependem do uso de um item, e ainda por cima em locais apropriados que deverão ser descobertos. O meu ponto aqui é expor o alarde tendencioso da mídia e seus ecoantes (outrora conhecidos como produtores de conteúdo). Acontece que itens que levam a comer conteúdo em potencial do jogo (como itens de reviver, fast travel e outros) são vendidos dentro do jogo, ou seja, existem ofertas de microtransações. Esses itens também são encontrados ou entregues de forma natural e espaçada dentro do jogo, sem custo. Eu diria que você só precisa comprar esse tipo de coisa se a) você odeia esse jogo, mas ora, é um jogo famoso e você quer fazer parte da conversa, ou b) você precisa correr com sua análise para ranquear bem no Google. Mas como estou com muita preguiça de explicar o óbvio, tire suas próprias conclusões. Não serei eu a impedir como você joga, e se a Capcom prefere te dar a opção de estragar o próprio conteúdo, afinal, o dinheiro é seu e ela decide como alcançar mais público da forma que ela bem entender. A opção está lá, a oferta está lá, mas você não precisa nem olhar para ela para desfrutar da qualidade geral.

Talvez a falta de ambientações mais variadas, a ponto de chamarmos de “o estereotipo de  settings que a  gente espera de um jogo épico de videogames”, seja algo que faça falta a quem quer sair do clima de alpes, vilarejos e campos com as mesmas cores lavadas apresentadas no primeiro jogo. Ao menos cada instância possível dentro deste bioma é explorada. Cada forma de floresta, desde as mais ensolaradas, às mais úmidas em tons de musgo estão aqui. A combinação de iluminação, particulas e o sistema de dia e noite podem formar inúmeras combinações agradáveis ou até aquelas deliciosamente desagradáveis, ao se certificar de que quando estamos falando de noites escuras, elas realmente sejam escuras. Encarar uma floresta escura em sua entrada é plenamente intimidador, e logo chama para vocÊ achar acampamentos para fazer refeições suculentas, com o capricho de bifes em live action, e deposi dormir para acordar em plena luz da aurora.

Dragon’s Dogma 2 é um conjunto de decisões e detalhes que levam você a uma rústica, emocionante e autêntica aventura medieval fantasiosa, que te convence de seus perigos e que cativa de suas maravilhas. É preciso ter pulso firme e apresentar mecânicas que realmente punam o suficiente, para que o jogador valorize todas as ferramentas oferecidas. Sem isso, estaríamos de volta a qualquer jogo atrás dele, empunhando espadas e arcos só pelo role play. O novo sucesso da Capcom é a antítese do videogame comprometido a se mostrar importante e realista somente por orgulho mais uma vez. Mais uma vez estamos jogando um video game que vale a pena o suor entre os dedos, e não só uma distração que levanta meio sorrisos.

DRAGON'S DOGMA 2

NOTA - 9.2

9.2

MASTERPIECE

Dragon's Dogma 2 é uma ousada e autêntica aventura medieval que desafia as convenções dos jogos contemporâneos. Sua coragem em romper com o convencional e sua riqueza de detalhes tornam Dragon's Dogma 2 uma adição valiosa ao mundo dos videogames, e ensina aos jogadores mais novos a correrem atrás de verdade de seus objetivos, sem maquiagens.