Review: Baldur’s Gate 3: Uma Odisseia de Narrativa e Estratégia

Quando Divinity: Original Sin 2 viu a luz do dia, tornou-se evidente que o RPG desenvolvido pela Larian Studios era algo singular. A fusão de personagens icônicos, batalhas baseadas em turnos envolventes, uma trama robusta, diálogos perspicazes e um design de missões de destaque o estabeleceram como um dos melhores – senão o melhor – jogos de RPG da década passada. Posteriormente, fomos presenteados com uma série de CRPGs notáveis, cada um com suas próprias conquistas impressionantes. No entanto, nada conseguiu capturar a mesma essência mágica para mim. Pelo menos, até agora.

Após um período de quase três anos em acesso antecipado e um total de seis anos de desenvolvimento, Baldur’s Gate 3 finalmente abriu suas portas aos jogadores de PC. Essa transposição da quinta edição de Dungeons and Dragons é monumental em escala e ambição, eclipsando todos os feitos anteriores do estúdio. Embora as expectativas estivessem em seu ápice, eu permaneci cético, esperando ver o que a equipe da Larian Studios seria capaz de entregar. Quer dizer, não tão cético, mas por se tratar de a Larian estar trabalhando com algo que não fosse Divinity pela primeira vez, já seria algo para me deixar curioso. Com o lançamento completo, posso afirmar sem ressalvas, que eles superaram, e muito, minhas expectativas.

“É um RPG no verdadeiro sentido da palavra, com um mundo deslumbrante para explorar, repleto de personagens inesquecíveis e segredos intrigantes…”

Baldur’s Gate 3 não é meramente um talismã bruto entre os RPGs já lançados, tampouco é apenas uma notável adaptação do vasto cenário de Dungeons and Dragons. É uma experiência que irá ressoar nos anos vindouros devido à sua profundidade, complexidade e, não menos importante, à alma criativa que permeia todos os aspectos desta jornada. Neste título, o conceito de RPG atinge sua essência, com um mundo deslumbrante pronto para ser explorado, repleto de personagens inesquecíveis e enigmas enigmáticos. Nele, você poderá dar asas a suas fantasias, independentemente dos caminhos sombrios que opte por trilhar.

Longe de meramente ser um espectador passivo da narrativa (embora essa abordagem tenha seu próprio apelo), aqui você se torna um protagonista, e não necessariamente um escolhido predestinado. Você é só mais alguém em meio a um mundo repleto de gente, raças e criaturas. Suas decisões e as direções que elas tomam moldam o desenrolar da trama, que responde de forma dinâmica, por vezes de imediato e, em outras ocasiões, com resultados surpreendentes e remotos. Quer você opte por vivenciar a jornada de Shadowheart, The Dark Urge ou qualquer outro personagem de origem, suas histórias ganham vida com a assistência de produção de alta qualidade.

Situado mais de um século após os eventos do segundo jogo, você é sequestrado por um Devorador de Mentes e mantido prisioneiro em seu Nautiloid, um navio da espécie. Um parasita Illithid é implantado em seu cérebro, um evento desastroso que ameaça transformá-lo em um Devorador de Mentes. Após um confronto com os cavaleiros Githyanki, ocorre um naufrágio e você emerge em Faerun. Logo após o primeiro encontro com uma das vítimas, Lae’zel, você é libertado para explorar um mundo vasto, no qual suas opções são praticamente ilimitadas.

Se desejar arrancar um Devorador de Intelecto do crânio de uma vítima para torná-lo seu animal de estimação, ou talvez resgatar Shadowheart ou, alternativamente, permitir que seu destino siga um curso trágico, você terá a liberdade de fazer todas essas escolhas e mais. E isso é apenas a ponta do iceberg.

“Dizer que esses personagens são meticulosamente concebidos seria uma mentira gigantesca. Eles são verdadeiras cebolas cheias de camadas, e suas interações fluem com uma naturalidade impressionante…”

Ao pisar em terra firme, uma jornada é desencadeada para eliminar o “girino” implantado em seu cérebro, e você logo se vê reunindo companheiros com histórias semelhantes. Entre eles, destaco Astarion, um excêntrico magistrado de Baldur’s Gate que também é um vampiro; Gale, um feiticeiro cativante cujo segredo carrega potenciais consequências catastróficas; Wyll, o Esgrimista da Fronteira, uma lenda venerada com um pacto obscuro a cumprir; Karlach, uma verdadeira Bárbara que têm uma verdadeira bomba atômica em seu coração, e muitos outros.

Descrever esses personagens como “meticulosamente concebidos” é, na verdade, uma atenuação. Cada um é dotado de complexidade e sutilezas, e suas interações transcorrem de maneira notavelmente orgânica. Sabe jogos como Final Fantasy XV que faz o uso da viagem de carro ser a forma de você interagir e conhecer mais dos seus companheiros? Baldur’s Gate 3 ensina aqui de forma magistral como a Square Enix e outros estúdios podem trabalhar melhor essa interação.

Shadowheart não confia facilmente nos outros, muito menos revela seus sentimentos, mas uma vez que você ganha sua aprovação, perceberá que ela recorre a piadas para descontrair sua natureza mais introspectiva. Gale, por sua vez, começa aparentemente confiante, porém conforme a trama avança, uma aura de desespero gradualmente se insinua, revelando sua dependência de artefatos mágicos. Karlach, uma máquina de combate sanguinária, transmite uma aura de força e confiança, embora ocasionalmente revele um lado tolo quando você a ajuda a consertar sua Máquina Infernal.

Os diálogos em tais interações são impecáveis e fluem de maneira natural. As dinâmicas entre os membros do grupo também proporcionam momentos divertidos, como as discussões estratégicas entre Lae’zel e Gale, ou as fanfarronices de Karlach para impressionar Shadowheart. É importante mencionar que, caso opte por não recrutar um indivíduo ou, até mesmo, escolher eliminá-lo, essas opções igualmente permanecem à disposição.

O mais impressionante reside na maneira pela qual mesmo os NPCs aleatórios contribuem para diálogos e interações memoráveis. Crianças Tiefling que escondem um covil subterrâneo ou Scratch, o cão paciente aguardando seu mestre, são exemplos notáveis.

Seja sua preferência focar na trama principal ou explorar cada recanto escondido dos três atos deste jogo monumental, Baldur’s Gate 3 se revela colossal.

A dublagem é sublime, merecendo destaque especial a atuação de Amelia Tyler, a Narradora. Com habilidade, ela une os elementos, transmitindo os pensamentos do protagonista e preenchendo as lacunas nas interações com perspicazes observações como um verdadeiro mestre em uma mesa de D&D. Isso é também um testemunho da qualidade intrínseca da narrativa, uma vez que, mesmo durante situações de movimento frenético, como vasculhar contêineres ou explorar cavernas e ruínas, o ritmo da narrativa se mantém coeso. Os eventos ocorrem de maneira fluida e, independentemente de quão trivial uma interação possa parecer, há a sensação tangível de que suas escolhas repercutem nas futuras reviravoltas. 

Independentemente de optar por se dedicar à trama central ou desbravar os cantos mais obscuros dos três atos do jogo, Baldur’s Gate 3 se revela uma experiência monumental. Cada companheiro possui sua própria linha narrativa e objetivos subjacentes a cumprir, preenchendo rapidamente seu diário de missões secundárias diversas. Em quase todo canto, há algo novo e cativante a ser descoberto – seja um local de massacre onde você enfrenta Gnolls, ou um celeiro repleto de intrigantes projetos de um ferreiro. Até mesmo encontros simples, como a história de dois indivíduos que perderam um aliado para um Urso Coruja, ganham vida como emocionantes aventuras com ramificações variadas.

Ainda mais instigante é a variedade de abordagens que se podem adotar em determinados encontros. Você pode enviar os dois indivíduos anteriores para enfrentar o Owlbear, o que resulta em suas mortes, ou pode escolher falar com a criatura previamente e evitar o combate. Ou, quem sabe, você os mate e adote o Owlbear Cub como mascote.

Na Vila Desolada, você pode se esgueirar pelos Goblins ou utilizar o girino Illithid para influenciá-los e fazê-los considerá-lo amigo. Tal tática possibilita evitar um grande confronto, mas também concede a oportunidade de preparar um ataque quando seus guardas estiverem desatentos. Escolhas como essas, entre muitas outras, enriquecem o jogo e conferem vitalidade ao seu mundo, proporcionando soluções únicas frequentemente superiores ao embate direto.

“O embate é inevitável, mesmo que ele assemelhe-se à abordagem de Divinity: Original Sin, com marcadores de precisão, movimentação e combate por turnos, Baldur’s Gate 3 assume uma abordagem singular.”

Naturalmente, tudo gira em torno do lançamento dos dados. Proficiências, equipamentos e habilidades (especialmente quando outros membros do grupo conferem bônus) podem alterar as probabilidades a seu favor. Contudo, sua raça, sub-raça e histórico também influenciam, como a possibilidade de intimidar alguém como um Drow Lolth-Sworn para obter informações sobre o criadouro Githyanki na região ou persuadir Kagha a libertar um jovem ladrão devido à afinidade dele com a natureza. E o mais interessante é que, mesmo em casos de falha, a narrativa segue adiante, frequentemente com desdobramentos intrigantes.

A batalha, invariavelmente, irrompe, e embora possa lembrar Divinity: Original Sin com seus indicadores de precisão, movimentação e dinâmica baseada em turnos, Baldur’s Gate 3 difere em essência.

No entanto, uma vez que a batalha inevitavelmente acontece, percebe-se que, embora existam semelhanças com Divinity: Original Sin, a abordagem de Baldur’s Gate 3 é exclusiva. O lançamento dos dados influencia vários aspectos, desde a precisão de seus ataques até o acerto ou erro no alvo; a rolagem de dano, que dita a quantidade de dano infligido; ou o teste de resistência, que pode mitigar ou eliminar completamente os efeitos de dano.

Adicionalmente, existem opções de combate igualmente empolgantes, como saltar para reposicionar-se ou empurrar inimigos, uma possibilidade particularmente vantajosa em terrenos elevados. Você pode arremessar objetos, incluindo armas e até indivíduos, criando novas oportunidades e alcançando vantagens ou desvantagens dependendo da situação.

Assim como a narrativa, o combate é onde a profundidade da construção de personagens verdadeiramente brilha. Interpretando o papel de um Paladino, onde mais tarde fiz multiclasse com Feiticeiro, eu pude alternar entre os ataques críticos corpo-a-corpo com espadas longas, melhorar a confiança e moral da minha equipe e usar feitiços onde aproveitei os elementos disponíveis nos campos de batalha. Quebrei, eventualmente, o juramento do meu Paladino, desbloqueando assim novas vias para minhas escolhas em diálogos, mas ao mesmo tempo recebi vários ônus por não ter conseguido ser uma Paladino verdadeiramente bom acima de qualquer víeis de julgamento. E isso apenas arranha a superfície, uma vez que os Companheiros, embora iniciem de maneira aparentemente simples, desvelam profundidade surpreendente quando combinados com outros elementos.

“São tantas opções que você vai ficar maluco! Com centenas de feitiços e manobras disponíveis ao longo do jogo, o leque de possibilidades pode parecer esmagador, mas de maneira positiva.”

Lae’zel, por exemplo, emerge como uma guerreira robusta, capaz de realizar Ações Adicionais e manobras mais rápidas. Contudo, ela também pode evoluir para se tornar uma Cavaleira Eldritch, adicionando Magia de Mísseis e Orbe Cromático ao seu repertório. Como Githyanki, ela ainda pode empregar a Ação de Salto Psiônico, permitindo saltos mais amplos, algo que pode ser compartilhado com outros membros do grupo.

Por sua vez, Karlach pode trilhar o caminho do Berserker, manejando machados duplos, ou se tornar um Coração Selvagem, cujo Coração Bestial oferece bônus variados aos aliados próximos, dependendo da escolha do animal. Isso se soma à Fúria, que amplia o dano e confere resistência a ataques físicos, e ao Ataque Imprudente, que oferece Vantagem nas jogadas de ataque, apesar de conferir vantagem similar aos inimigos.

Sinceramente, a variedade é impressionante. Com centenas de feitiços e manobras à disposição durante todo o jogo, pode-se ficar sobrecarregado, mas essa abundância é positiva. A oportunidade de personalizar e aprimorar seu personagem é gratificante. A exploração completa das inúmeras opções de equipamento e talentos, porém, fica para futuras incursões, pois cada um oferece bônus e capacidades adicionais, enriquecendo ainda mais as compilações. 

Vale ressaltar que cada aspecto explorado até aqui é apenas o início. Há tamanha profundidade na experiência, como os poderes Illithid que proporcionam novas formas de influenciar pessoas e inimigos, ou as descobertas ocultas que podem ser reveladas com uma percepção aguçada. Ou ainda os combates em si, cada qual com uma atmosfera distinta, convidando você a experimentar abordagens diversas e a usar o ambiente de maneira estratégica. E, é claro, a notável parcela dedicada ao sistema de criação de personagens, com sua vasta seleção de opções para cada raça.

Quanto à apresentação e aos aspectos visuais, os modelos dos personagens exibem distinção, enriquecidos por expressões faciais marcantes e movimentos realistas. Os cenários deslumbram com detalhes, incluindo esplêndidos raios de luz, vegetação exuberante e texturas minuciosas. Em vez de optar por uma câmera suspensa durante os diálogos, cada interação se desenrola como uma cena autêntica, explorando ângulos de câmera variados que acrescentam imersão e personalidade. 

Todavia, o ponto mais notável é que, mesmo com uma configuração modesta (no caso, um Steam Deck), Baldur’s Gate 3 entrega desempenho sólido. Assim como, claro, em configurações melhores, é possível inclusive fazer upscalling para 4K e usar o DLSS, que é a forma que venho jogando. Minha experiência tem sido extremamente positiva até o momento, mas relatos de quedas de quadros em partes avançadas do jogo têm emergido, até mesmo para quem dispõe de hardware robusto. Tais ocorrências não comprometem a experiência de maneira significativa e, espera-se, que serão otimizadas oportunamente.

A isso se somam as falhas técnicas que, é bom frisar, em um título de tal envergadura, repleto de sistemas intrincados, eventos variados e uma galeria diversificada de personagens, são em grande medida esperadas. É verdade que a perfeição não foi alcançada, mas a qualidade do polimento é inegável. Encontrei um bug que ocultava a barra de ação de Lae’zel sob várias circunstâncias, um problema que foi solucionado ao recarregar um ponto de salvamento.

Outras questões, como atrasos nos cálculos de dano ou pequenas pausas ao aguardar a exibição das opções de diálogo, também surgiram. Além disso, notei momentos de instabilidade em algumas cenas. Não se pode esquecer do infame bug relacionado aos saves (o que resultou na suspensão dos salvamentos cruzados da Larian durante a busca por uma correção).

“Mesmo com tais imperfeições, por mais pequenas que sejam, a Larian mais uma vez alçou os padrões dos jogos de RPG para um novo patamar.”

Somado a isso, é necessário abordar o sistema de inventário, que poderia beneficiar-se de algumas modificações. O jogador acumula muitos itens ao longo do jogo, o que pode tornar o inventário confuso em pouco tempo. Ainda que existam filtros e categorias para auxiliar na organização, e mesmo que seja possível enviar itens de volta ao baú de armazenamento no acampamento, o gerenciamento pode se tornar complicado em algumas ocasiões. E isso é um problema que vem desde a série Divinity.

Em relação à trilha sonora, Borislav Slavov, o compositor de Divinity: Original Sin, retorna para brindar-nos com mais uma melodia cativante. Desde a abertura do jogo, o tema Down by the River, que acompanha a criação do personagem, e cada faixa subsequente, deleitam os ouvidos com uma sinfonia magistral, que ressoa de maneira coerente com a ambientação. Palavras não fazem jus à qualidade das composições, e sugiro, se nada mais, que você ouça a trilha sonora e se deixe envolver.

“Existe,  a partir de agora, um antes e depois de Baldur’s Gate 3 na indústria”

Baldur’s Gate 3 é um triunfo em diversos aspectos. Narrativa, combate, diálogos, escolhas, visual, música, dublagem, ritmo, elaboração de missões secundárias e complexidade – todos estes elementos parecem harmonizados e o cuidado com os detalhes é inegável. Isso sem mencionar a imensa variedade de opções de repetição, com inúmeras classes, subclasses, feitiços, caminhos, decisões e muito mais. A despeito de suas falhas, por menores que sejam, a Larian mais uma vez redefine o padrão dos jogos de RPG. De fato, vai existir um antes e depois de Baldur’s Gate 3 na indústria de jogos.

Baldur’s Gate 3 é um verdadeiro marco, certamente uma “anomalia“, mas acima de tudo, um sonho que se realizou.

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