Há trezes anos, o primeiro Alan Wake saía em meio ao lançamento de outra obra de imenso destaque: Red Dead Redemption. Era 14 de maio de 2010 quando o então exclusivo do Xbox 360 saiu, movimentou alguns pilares da indústria e mexeu com muitos corações e mentes. Contudo, não houve tempo suficiente para fazer mais. Apenas quatro dias depois, em 18 de maio, Red Dead Redemption também saiu. A obra da Rockstar, que por si carregava o pedigree da desenvolvedora, eclipsou o Alan Wake original.

(Corta para 2023)

Lançado no último dia 27 de outubro, bem às portas do Halloween, Alan Wake 2 nasceu diferente do seu antecessor. E em um desafio ainda maior. Mesmo que 2023 seja um ano vastamente positivo em relação aos grandes jogos lançados, AW2 se destaca com facilidade e mesmo com pouco tempo de lançamento. Curiosamente, o pouco tempo do primeiro jogo o afetou enquanto o pouco tempo do segundo atestou seu brilhantismo.

Afinal, em um ano com jogos como The Legend of Zelda: Tears of The Kingdom, Baldur’s Gate 3, o remake de Resident Evil 4, Spider-Man 2 e Super Mario Bros Wonder, os jogos indicados hoje ao The Game Awards, o jogo de Sam Lake sobe ainda mais a barra de 2023.

Antes de tudo, esta análise não conterá spoilers do segundo jogo. Contudo, uma ou outra coisa pode ser arranhada em relação à obra original.

Alan Wake, o retorno

Ao fim do primeiro jogo, o atormentado escritor realiza um sacrifício à beira de Cauldron Lake, o lago (oceânico… “It’s not a lake, it’s an ocean”) de Bright Falls. A atitude joga Wake dentro do Lugar Obscuro, um espaço que certamente ninguém, nem mesmo Stephen King, gostaria de estar. E se cito King, claro, é porque o primeiro jogo bebe na fonte de algo que o escritor faz de forma invejável, que é o que eu gosto de chamar de suspense de cidade pequena.

Assim chamo porque é admirável a forma como Stephen King, através dos seus contos e romances, consegue instituir uma sensação de pertencimento. A sensação faz com que seu leitor, ou espectador no casos dos filmes, sinta-se parte daquele povoado, daquela comunidade. Com isso, cada coisa que acontece de ruim ou de negativo com aqueles personagens, reflete-se em nós. Somos mais um entre aqueles, conhecemos bem o íntimo daqueles personagens. O que os fere, nos machuca.

Portanto, assim como King é fenomenal em dar fôlegos de vida aos seus personagens e pequenas cidades, é também admirável a forma pluri-ecossistêmica criada por Sami Antero Järvi. Sami, para quem não o reconheceu de antemão, é certamente mais conhecido por seu nome artístico: Sam Lake.

Lake, antes de tudo, é aquele criador/criatura de mão cheia. À frente das câmeras, ele atua e também é modelo de rosto e corpo para personagens. Por trás das lentes, seu papel é ainda maior: Lake compõe, roteiriza, produz e dirige. Ou seja, ele não é apenas o modelo de rosto/corpo de Max Payne ou tão somente o ator que interpreta o personagem Alex Casey. Sam Lake é o rosto, a alma e o coração da Remedy, a desenvolvedora das séries Max Payne e Alan Wake, bem como jogos solo, tais quais Death Rally, Quantum Break e o megassucesso Control.

Saga Anderson, a chegada

Dessa vez, porém, Alan Wake não veio só. De forma torturante, a espera por controlar o escritor, mesmo depois de longos trezes anos (ou onze se contarmos o American Nightmare), pode durar um pouco mais. Afinal, neste novo jogo, a franquia ganha uma nova coprotagonista. Seu nome é Saga Anderson. E ela ganha seus próprios coadjuvantes, pano de fundo e desenvolvimento.

E assim a detetive Saga Anderson chega em Bright Falls, para investigar uma série de assassinatos que podem estar relacionados a um misterioso culto. Além disso, o culto parece ter outras ramificações que podem descambar em… Alan Wake e seu desaparecimento.

Junto de Saga, há Alex Casey, seu parceiro. E para chacoalhar ainda mais o enredo, Alex Casey é o homônimo do principal personagem dos livros de Alan Wake. Entretanto, apesar de serem personagens opostos, os dias de Saga serão tão difíceis quanto as noites de Wake. Se o escritor teve um insólito destino ao fim do primeiro jogo, ela inicia a continuação de forma bastante incômoda.

E à medida que vamos encontrando pistas do primeiro caso de Saga, as pistas mostram indícios que podem incluir o tal escritor. Não à toa, o primeiro caso parece amarrar algumas pontas deixadas ao mesmo tempo em que cria novos rastros.

Saga, contudo, possui storyline próprio e muito bem desenvolvido. Apesar de ser estreante, a personagem insere-se de forma cativante no enredo. Através dos seus olhos e olhares, passamos a conhecer mais sobre a Bright Falls após os incidentes de 2010. Saga, assim, além de olhos e ouvidos, é a nossa lanterna e escuta. O fato, no entanto, dela estar acompanhada pelo detetive Alex Casey, pouco diminui a carga de pavor e suspense. O jogo é, felizmente, opressor. Era preciso cativar o jogador pela alma. Ou pelo frio em sua espinha dorsal, mais precisamente. Assim foi, é e será.

Portanto, cada passo de Saga leva não apenas rumo ao desconhecido, mas, a um mal maior.

As referências em Alan Wake: parte 1

A experiência adquirida com o tempo fez muito pela Remedy. A prova maior é a existência deste jogo da forma como ele é. Se o primeiro jogo é um abraço aos microuniversos de Stephen King e à charmosa estranheza da série Twin Peaks, Alan Wake 2 desemboca suas raízes em mais filmes, séries, livros, músicas, o jogo original e outras obras da Remedy.

O tipo de narrativa transmidiática proposta engrandece o título ao usar, ora do cinema, ora da música, para fazer incrementar uma maior intensidade aos diálogos, cenas e acontecimentos em tela. Todavia, o jogo usa o audiovisual. Não se deixa ser usado por ele (mais sobre ao fim do texto). E se Max Payne usava as obras em quadrinhos e as inspirações do cinema noir da Hollywood clássica para contar sua história, Alan Wake entende o fator multiverso sem soar cansativo, abusivo ou desencorajador.

Ou seja: por mais que haja um Remedyverso entre Max Payne, Alan Wake, Quantum Break e Control para unir tramas e personagens da desenvolvedora finlandesa, nada disso se coloca à frente de Alan Wake, de Saga Anderson e das suas narrativas. Há, antes de tudo, um objetivo linear e claro: contar, digna e interessantemente, a história deste Alan Wake 2 para novatos e veteranos.

E que bom que na soma de tudo que é apresentado, as referências surgem enquanto acessórios de luxo. Muitas coisas em tela gritam ao coração de quem acompanha minimamente algum eixo da cultura pop. Porém, nem tudo é explícito ou sequer é contemporâneo. Há referências no jogo que, como no primeiro, são de meados do século 20. É o caso do seriado fictício Night Springs, que é em alusão à Além da Imaginação (1959-1964), série com algumas repaginações nas décadas seguintes.

No mais, outras referências surgem em paralelo, como o já sabido Twin Peaks, ou ainda a aura de buddy cop movie entre Saga e Alex, tão fiel às representações de Arquivo X ou True Detective. A inspiração no seriado detetivesco da HBO foi confirmada pela própria Remedy, que listou algumas obras que moldaram a essência de Alan Wake 2.

As referências em Alan Wake: parte 2

E se falamos de Além da Imaginação, Arquivo X, True Detective e Twin Peaks acima, ainda há espaço de sobra para Hannibal (a série), Ilha do Medo, O Iluminado e até mesmo Matrix.

De Hannibal, Alan Wake 2 se aproveita de uma das suas melhores particularidades e mecânicas: o Lugar Mental e a Sala do Escritor. Tanto Saga quanto Alan possuem um espaço próprio para exercitarem seus devaneios e elucubrações (ambos), processos de investigação (ela) e a escrita (ele). Nestes dois espaços, o jogo dá uma necessária pausa para que o jogador consiga ater-se mais profundamente aos fatos e pistas, pedaços da história que vão se montando e consiga, principalmente, seguir com a história.

O Lugar Mental e a Sala do Escritor possuem suas direções de arte bastante específicas. Enquanto o Lugar Mental de Saga é uma espécie de delegacia com direito aos itens pessoais/familiares e a decoração comum à lugares assim, a Sala do Escritor é um espaço isolado de vida e de toques pessoais, sombrio e noturno, sem alma e frio.

No entanto, são nestes espaços que muito da narrativa se desenvolve e passamos a ter acesso aos perfis de outros personagens centrais da trama. O modus operandi do pensamento de Saga/Alan é desenhado audiovisualmente à nossa frente. Com isso, o jogo mostra o quão importante é, além de manter a tensão e o pavor constantes, a importância das pausas e hiatos de jogabilidade em prol da narrativa. Além disso, os dois protagonistas possuem mentes admiráveis.

É algo bastante similar ao que foi tão bem visualmente abordado em Hannibal, a partir do personagem Will Graham, interpretado na série pelo ator Hugh Dancy. A série é outra inspiração assumida pela Remedy na construção do Lugar Mental e da Sala do Escritor.

As referências em Alan Wake: parte 3

E é justamente ao irmos nos aprofundando nestes espaços mentais que Alan Wake 2 se aproxima de adotar traços referenciais de outra obra: Ilha do Medo, o filme do genial e necessário Martin Scorsese, e baseado no livro Paciente 67, do escritor Dennis Lehane. Não à toa, é mais uma obra que segue a estrutura de um buddy cop movie e põe dois investigadores no encalço de uma investigação um tanto macabra e misteriosa.

O filme com Leonardo DiCaprio e Mark Ruffalo é um perfeito exemplo dos caminhos mentais e físicos tortuosamente interessantes que Saga Anderson e Alex Casey seguem ao longo do jogo.

E se Ilha do Medo já não o deixou curioso o suficiente para dar uma chance ao jogo, que tal saber que há fortes inspirações em O Iluminado? Trazendo Stephen King para o centro novamente, Alan Wake 2 consegue instalar um senso de perturbação e pavor que somente uma obra-prima do survival horror é capaz.

Sem spoilers, basta dizer que a direção de arte do hotel que dá ao lugar ao filme é bastante aproveitada na construção dos cenários de um determinado e amedrontador trecho de Alan Wake 2. É possível, facilmente, se elencar ao menos quatro referências diretas ao filme de Stanley Kubrick. Vocês notarão. E temerão!

Por fim, coroando o universo fílmico, sobra espaço até mesmo para que alusões ao filme Matrix deem as caras. Ora, basta reparar em determinados ângulos de câmera nos trechos que envolvem o ato de atender um certo telefone público. Sem contar, óbvio, o próprio fato do jogo se passar em dois planos, entre o factual e o ilusório, o ficcional e o real.

As mecânicas do jogo

Alan Wake 2 certamente torna-se o ápice da desenvolvedora finlandesa não apenas pelo que faz de grandioso. Nos detalhes, AW2 se sobressai e se destaca como muitos jogos ou mesmo obras da cultura pop tentam, só que apenas resvalam ou esbarram em suas intenções. AW2 é uma obra sólida e instigante não só porque nos convida a vivenciarmos o puro horror e o gótico, mas também, e fortemente, por cada passo que dá para tal.

Falando em passos, apesar de ser permitido correr em praticamente qualquer momento do jogo, em muitos instantes, andar é quase uma exigência positiva. Ajuda a explorar mais, melhor e, óbvio, nos entrega às tensões parceladamente.

Como exemplo, posso citar detalhes astuciosos do gameplay. Como o jogo se passa em espaços abertos, embora não seja um sandbox, ele nos põe medo e curiosidade ao mesmo tempo. O medo de ir por um outro caminho e nos depararmos com o pior e a curiosidade de, ao mesmo tempo, ir e sermos recompensados com algo benéfico ao restante das horas de jogo. Ou seja: a atmosfera calma e segura pode render menos frutos do que uma passagem sombria e devastadora.

Opte pelo desconhecido para sair dele mais forte.

E falando em caminhos que tomamos, da mesma forma, e bastante sutilmente, quando estamos diante de uma encruzilhada, o jogo consegue nos direcionar para caminhos alternativos simplesmente fazendo com que um NPC que nos acompanha, antes que nós, siga pelo caminho natural da progressão da história. Pode parecer um pequeno detalhe — e é —, mas, ainda assim, é uma forma do jogo nos guiar para onde devemos ir em caso de alguma falta de noção quanto ao trajeto a se seguir.

E o level design segue funcionando também de forma excelente quando aspectos do cenário implicitamente funcionam como pontos norteadores do nosso destino. Ao jogador, sempre restará um apoio visual do próprio cenário para que saibamos o destino.

O level design

E se os caminhos são bem norteados, a maneira como cada novo cenário parece ter um começo, meio e fim para por fim ao nosso inventário é, também, fenomenal. Em quase todas as horas em que joguei (mais de 30h), constantemente parecia que minhas munições e itens de cura estavam por um fio. Quando, de fato, não ficaram mesmo. A forma escassa é uma constante que apedreja nosso senso de sobrevivência. Sempre fica uma questão: ao avistar algo ou alguém, é melhor correr e poupar munição ou enfrentar para tentar, com certa tranquilidade, buscar mais itens?

Alan Wake 2 segue atormentando nossas decisões até mesmo com relação ao gerenciamento do nosso inventário. É uma forma brilhante e quase invisível de usar o aspectos da jogabilidade para dar mais densidade aos momentos já aterrorizantes do enredo.

E quando o level design abraça as cenas espectrais em live action? Todo o elenco do jogo entrega atuações que nos causam repulsa e empatia por aqueles personagens em tela. As decisões de utilizar as cenas espectrais amalgamando videogame e audiovisual são acertos sobressalentes.

Tudo isso, cinema, música, videogame pode ser grandiosamente visto no estupendo capítulo quatro dos trechos do personagem do escritor. O ridículo, o grotesco, o cômico, o genial: está tudo lá e diante de nós.

E falando em construção de fases e cenários, esperem até vocês testemunharem os momentos em que ocorrem as transições para as Justaposições. Com o perdão do pleonasmo: são momentos pavorosamente insanos.

Aceita um café?

Alan Wake 2 poderia ser e seria o jogo do ano em muitos outros anos. Não fossem as difíceis batalhas contra Baldur’s Gate 3 e The Legend of Zelda: Tears of The Kingdom, AW2 certamente levaria todos os prêmios de jogo do ano. Caso isso acontecesse, não há o que reclamar: Alan Wake 2 é uma obra-prima.

Como a memória é algo que, quanto mais fresca e quente, mais poderá ajudar na sensibilidade de alguns votantes, Alan Wake 2 poderá surpreender e consagrar-se como o Jogo do Ano, levando o The Game Awards (GOTY).

Finalizando ao retomar algo destacado no início do texto, o que a Remedy entrega aqui não precisa ser adaptado para o cinema ou virar série. Por si só, AW2 já prova o enorme potencial que a mídia dos videogames possui. Embora possa acontecer, afinal, as adaptações de jogos se tornaram a mina de ouro que um dia os filmes de heróis foram ou por algum tempo ainda serão, não há necessidade de Alan Wake sair de uma mídia para outra(s). O jogo, em si e por si só, já é a sua melhor adaptação.

O que nos resta, na realidade, é torcer para que o terceiro jogo não demore outros treze anos para ser lançado.

Ainda assim, já se sabe que há DLCs vindo aí. O que é ótimo, pois a saudade de algo que é maravilhoso, tal qual um bom café, precisa ser quente.