A Virada Silenciosa dos Videogames

A indústria de videogames acorda cedo, toma café frio e corre para uma reunião que já começou ontem. Há um barulho de papel virando, um gráfico apontando para cima, promessas de “crescimento sustentável”, e, no canto da sala, um controle desligado. O controle está sempre ali, como um troféu de participação: lembrança de que, no passado, alguém apertava botões por paixão, não por projeção. Hoje, quem manda é o trimestre. E trimestre não joga videogame.

Quando digo que o setor entrou num beco sem saída, não é drama de fã decepcionado; é descrição de processo. O negócio foi se misturando à lógica do mercado financeiro até confundir objetivo com método. Objetivo: fazer bons jogos, que falam uma língua própria, que deixam marcas discretas e profundas no jogador. Método: organizá-los como projetos, com cronograma, orçamento, iteração. Até aí, tudo certo. O desvio se instala quando o método vira objetivo: o foco da produção se desloca para cumprir metas ligadas à permanência dos jogadores, para abrir funil de aquisição, para vender o “pacote inicial” que destrava o direito de se divertir. Passa a existir para caber no PowerPoint, não no coração de quem joga.

Starfield: Official Teaser Trailer
O espaço infinito que Starfield prometia parecia terreno fértil, mas o controle revelou limites de uma indústria engessada.

O beco começou a se fechar quando o custo médio de produção escalou para números que pedem desculpa antes de serem ditos. Ambiente de risco alto pede conservadorismo; conservadorismo pede fórmulas; fórmulas pedem comitês. E comitê é onde a convicção vai para ser diluída. Surge a fantasia da “segurança criativa”: mundos abertos que medem valor em quilômetros quadrados, sistemas que repetem promessas já validadas, monetização que empilha camadas como se complexidade de cobrança fosse profundidade de experiência. O resultado é conhecido: jogos que parecem grandes por fora e pequenos por dentro. Quem já não entrou num mapa imenso que, depois de meia hora, vira um corredor invisível com tarefas que piscam no canto da tela como lembrete de que a vida adulta já basta?

É aqui que indies e AA se tornam o desvio necessário. E não por serem românticos ou “puros”, mas por operarem em outra ecologia de risco. Com menos dinheiro em jogo, há mais espaço para dizer “não” a modas passageiras e “sim” a ideias insistentes. Com equipes menores, há menos distância entre a pessoa que sonha e a pessoa que implementa. O feedback não se perde em tradução. E, talvez o mais importante, o fracasso recupera seu papel pedagógico: um projeto pode errar e, ainda assim, valer a pena, porque o aprendizado volta para o próximo rascunho sem derrubar o prédio.

Repare como esse deslocamento muda o tipo de pergunta que abre cada projeto. No AAA travado, a reunião começa com “qual é o tamanho?” e “qual é o plano de conteúdo do ano 2?”. Nos times que respiram, a pergunta é “qual é a sensação?” e “qual sistema conversa com ela?”. A diferença parece sutil; é estrutural. Quando a sensação comanda, o escopo vira consequência. Quando o escopo manda, a sensação é um adereço.

Não estou dizendo que “grande” é sinônimo de “ruim”. Ainda vemos jogos enormes que exalam convicção. Justamente porque alguém, em algum ponto, blindou a visão do ruído do mercado. O ponto é outra coisa: a regra virou a ausência de risco estético. O AAA médio se contenta com vitrines que demonstram tecnologia e trilhas de monetização. A “paixão por videogames” virou frase em vaga de emprego, não energia que organiza o trabalho. E paixão não é uma palavra bonita para pôster; é aquilo que permite que uma equipe diga: este recurso é impressionante, mas não serve ao que queremos dizer. Isso gasta reputação no curto prazo e salva o projeto no longo.

Enquanto isso, o território indie/AA vai acumulando a função de laboratório público da indústria. Ele testa formatos narrativos sem uniformes, brinca com tempo e espaço sem um departamento de “inovação” pedindo relatório, recusa a obrigação de ser tudo para todos. E é por isso que dali saem tendências que mais tarde desembarcam no mainstream. Não preciso fazer uma lista de nomes; basta lembrar como um punhado de experiências recentes redefiniu nossas expectativas: o modo como um loop temporal pode ensinar o jogador a fazer perguntas melhores; como um roguelike pode usar repetição para colar mecânica e tema; como simulações de base podem transformar planilhas em histórias; como “pequenos mundos” podem caber inteiros na palma da mão sem pedir temporada de conteúdo. Esses movimentos nascem onde projetos podem ser teimosos. Teimosia é luxo que o orçamento gigante desaprendeu a financiar.

10 Minutes Of Gameplay | MILITSIONER by TallBoys
Militsioner é um conceito estranho demais para o mercado grande, mas perfeito para mostrar até onde vai a invenção indie

Se o beco sem saída do AAA tem placa, nela está escrito “projeções”. É a fé num futuro que precisa ser sempre maior do que o passado, mesmo quando o presente grita que não. A cada ciclo, as empresas prometem resultados que exigiriam dois milagres: vendas recordes e custos estáveis. Como nenhum dos dois obedece a Excel, o milagre substituto vira marketing: trailers que anunciam mundos que não cabem no escopo real, promessas de “você vai poder fazer qualquer coisa” que o design depois precisa desdizer, roadmap que pinta um horizonte que só existe no melhor dos casos. A biruta não aponta para o vento da criação; aponta para as expectativas da bolsa.

O efeito colateral é conhecido por quem trabalha dentro: demissões em massa logo após “cortes de escopo”, rodízios de liderança, terceirização de responsabilidade (“a comunidade não entendeu”), crises reputacionais que ocupam mais tempo de estúdio do que qualquer refinamento de sistema. Jogos viram veículos de calendário. Estúdios viram departamentos de metas. E a comunidade, que poderia ser parceira, vira uma estatística de retenção: um número a ser otimizado com estímulos de dopamina.

A ironia é cruel: o discurso oficial fala de “experiências marcantes”, enquanto o design se organiza para reduzir fricção a zero. A marca que fica em nós quase sempre vem da fricção certa — aquele obstáculo que, quando superado, revela não só habilidade, mas compreensão. Os melhores indies recentes insistiram nisso: em aceitar que o jogador é inteligente e curioso, em dar tempo para ele descobrir, em construir sistemas que falem entre si. Não se trata de dificultar por orgulho; trata-se de não infantilizar. A diferença aparece até na economia do tempo: muitos jogos grandes nos tratam como cronômetros ambulantes, como se dever lúdico fosse se conectar diariamente para “não perder o passe”. Jogos menores, quando acertam, nos devolvem o tempo como escolha: você joga porque quer, e, quando não joga, o jogo não te culpa.

Megabonk Release Trailer
Megabonk mostra como até os maiores sucessos indies geram mutações criativas, enquanto o AAA insiste em cópias de si mesmo.

Talvez o verdadeiro conflito seja este: quem o jogo considera que você é? Um cliente que precisa ser retido? Um número que precisa ser ativado? Ou um sujeito capaz de dialogar com um mundo possível? Quando a resposta é a terceira, emergem aquelas experiências que seguimos lembrando anos depois, mesmo que tecnicamente não sejam revolucionárias. A revolução, nesse caso, é de postura: reconhecer que videogame é uma conversa — com ritmo, pausas, sotaques — e não um estacionamento de features.

E o que a grande indústria pode aprender com esse laboratório de convicção? Quatro coisas simples de dizer e difíceis de fazer.

A primeira é honestidade de escopo. Não adianta montar o parque inteiro e admitir, no fim, que só deu para abrir três brinquedos. Melhor publicar o que existe com força, coesão e começo-meio-fim. “Jogo médio” não precisa ser xingamento; pode ser categoria de prestígio: 12 a 20 horas intensas, sistemas em harmonia, sem gordura. A função social do projeto médio é, inclusive, proteger os gigantes: ele permite portfólio saudável, receita cadenciada e respiro criativo. O AAA morreu de medo da média — e, ao fazer isso, abriu mão de um terreno onde a invenção floresce.

A segunda é processo com comunidade, não contra ela. Acesso antecipado sério, testes de vertical slice com grupos controlados, comunicação que assume dúvidas e escolhas — tudo isso reduz o abismo entre visão e expectativa. Não é terceirizar design; é reconhecer que o jogo só existe inteiro quando jogado. O mercado provou que comunidades respeitadas viram advogadas do projeto. Consequentemente, as comunidades manipuladas viram júri.

A terceira é monetização que não humilha. Vender expansão boa é diferente de vender atalho para fugir de uma fila criada pelo próprio design. Se a economia interna existe para gerar escassez artificial e, então, vender alívio, o jogo deixa de ser jogo e vira pedágio. Jogadores percebem. E perdoam pouco.

A quarta é reorganizar a hierarquia do estúdio para apoiar direção criativa real. Não basta contratar um “diretor” e cercá-lo de comitês que esvaziam cada decisão. Convicção nasce de autonomia responsável: de um núcleo que pode decidir, justificar e bancar recuos. Sim, isso cria fricção interna. Mas fricção é onde o sentido se faz. Quando tudo precisa ser consenso, o que resta é neutro. E convenhamos, neutro, no mercado saturado, é inaudível.

Concord - Gameplay Trailer | PS5 Games
Do lançamento ao desligamento em dias: a indústria prova que saturação não cria memória.

Existe, claro, um contra-argumento recorrente: “mas e os sucessos AAA recentes?” Eles existem e são valiosos. Justamente por resistirem à tendência dominante, não por representá-la. O problema não é a impossibilidade de acerto; é a taxa de desperdício que se tornou estrutural. Para cada lançamento memorável com assinatura grande, acumulam-se estúdios desmontados, equipes rotativas e calendários adiados. Isso não é acidente de percurso: é consequência da teimosia em prometer o que não cabe no regime de produção.

Do lado de cá, na praia indie/AA, não há romantização. Também existem erros, projetos inacabados, clones oportunistas, exploração disfarçada de “paixão”. A diferença é que, nesse ecossistema, o acerto tem permissão para ser estranho, a invenção encontra frestas para passar, e o custo do tropeço não derruba um quarteirão inteiro. É onde prospera a pergunta que o AAA parou de fazer: “o que só nós poderíamos fazer?”. Quando um time pequeno responde a isso com clareza, o resultado contamina para cima — às vezes diretamente, às vezes como rumor estético que vai inspirar o próximo projeto mediano de uma casa grande. E assim a roda da invenção continua a girar.

Há também um ponto ético que raramente entra nos relatórios, mas que o jogador sente no corpo: a maneira como tratamos quem faz jogos aparece no produto. Calendários que desmontam pessoas, políticas que trocam equipes como quem troca skin, expectativas de “sprint infinito” — tudo isso vaza para a tela. Você reconhece quando um jogo foi finalizado na marreta. Você reconhece quando foi lapidado com tempo e silêncio. E a indústria que se diz criativa precisa, um dia, admitir que a criatividade não nasce em chão escorregadio.

Se eu pudesse oferecer uma imagem de saída, seria esta: em vez de imaginar um túnel reto que leva ao “novo AAA”, pense em uma cidade. No centro, ainda existem catedrais — grandes projetos, poucas vezes por década, que pedem peregrinação. Mas, entre elas, há praças, cafés, uma senhora vendendo cocada, bicicletas, jardins comunitários. São os projetos médios e pequenos, que mantêm a vida circulando, que estabilizam receitas, que reinventam hábitos, que treinam pessoas, que preparam terreno para quando for a hora de erguer outra catedral. O beco sem saída só existe para quem insiste em atravessar a cidade inteira de limusine.

No fim, todo este debate volta ao controle na mesa. Para quem esse objeto foi desenhado? Para que gesto? O gesto que salva nunca é o de “segurar por 200 horas”; é o de “voltar porque fez sentido”. Quando um jogo consegue isso — seja ele um épico com orçamento de filme, seja um visual novel de poucas horas —, a planilha respira. Não ao contrário. A indústria precisa reaprender a sequência: primeiro sentido, depois sistema, depois orçamento, depois projeção. Troque a ordem e você constrói vitrine; mantenha a ordem e você constrói memória.

Death Stranding 2: On the Beach - Final Trailer | PS5 Games
Exemplo raro de blockbuster que sobreviveu e se tornou uma franquia porque nasceu de uma visão única, não de fórmula.

Quando as grandes vias da indústria ficam congestionadas por excesso de ambição e planejamento rígido, é nas ruas menos movimentadas que surgem novas possibilidades. Os indies e AA percorrem vielas onde a pressa não domina, atravessam praças onde a curiosidade vale mais que o destino final. Essas iniciativas se espalham como ciclovias improvisadas, desenhando mapas sem pedir autorização ao guardinha chato de trânsito. A vitalidade da cidade dos jogos está nessas rotas alternativas, até mesmo nas periferias, onde convicções e limitações coexistem, e o tempo é a moeda do próprio desenvolvedor. Criar videogames, nesse território, é um convite à descoberta, ao risco calculado e à escuta atenta de quem compartilha esses caminhos. O barulho dos grandes centros é constante, mas é nos encontros fortuitos que se constrói memória, identidade e, por vezes, sentido.

E, quando a poeira das apresentações baixa, é simples: a gente liga o jogo e pergunta: “há alguém aí do outro lado?”. Se a resposta vem rápida, se a mão reconhece a ideia, se a conversa começa, todo o resto, inclusive o investimento, encontra lugar. Se a resposta é o eco do PowerPoint, é porque a equipe passou meses falando com a planilha. Ninguém joga planilha. E nenhuma projeção, por mais agressiva, consegue segurar o jogador por muito tempo quando o que ele tem nas mãos é só um inventário de promessas.

Então fica assim: a saída pede gesto simples e corajoso. Menos comitê, mais convicção. Menos meta trimestral soprando no cangote, mais tempo decente para um time pensar, errar, lapidar e acertar. Portfólios que abracem jogos médios com orgulho, ciclos de produção que escutem a comunidade sem transformar gente em métrica, monetização que respeite o tempo do jogador. O restante se ajeita. Quando uma equipe escolhe um recorte claro, corta o supérfluo e organiza o projeto ao redor do que importa, o controle liga diferente; dá para sentir no primeiro movimento de câmera, no primeiro impacto de um sistema conversando com outro. Os indies e AA já fazem isso todos os dias, acendendo luzes em ruas que os gigantes ignoraram por anos. Cabe aos estúdios grandes caminhar até lá e aprender com quem tem ferramental afiado e bolso curto: foco, ritmo, linguagem própria. É desse encontro que nasce a próxima década — menos brilho de vitrine, mais calor de obra. E, quando chegar a hora de prestar contas, que o relatório espelhe algo simples: um jogo que deixou marca, jogadores que voltaram porque quiseram, equipes inteiras que cabem no crédito sem queimar por dentro. O resto, inclusive o gráfico da apresentação, encontra seu lugar quando o produto respira. O controle liga, a primeira cena começa, e a indústria, por um instante, lembra por que existe.

Sair da versão mobile