A riquíssima miséria em forma de experiência que é Kingdom Come Deliverance II

A maior barreira que enfrento na narrativa de jogos é a sua magnitude, que muitas vezes me espanta e me leva a fugir, como um Pokémon na grama alta. Ou como um encontro do Tinder que começou a conversa dizendo que me viu no shopping no dia anterior, roubando refrigerante demais no Burger King.

Bem-vindo ao inferno, filho

 É aquela velha história de que ‘videogames não têm histórias boas até hoje’ – você já deve ter passado por essa afirmação em algum podcast, artigo ou rede social. É um pouco exagerado dizer isso, mas, num todo, é verdade. Quem escreve nessa indústria continua com a mente juvenil, mesmo que já possua barba — o que hoje em dia não quer dizer absolutamente nada.

Sem querer estragar a surpresa, mas isso a gente vai ver em Avowed já, já. Por mais que uma ideia soe grande na sua cabeça, não é dever meu como consumidor acompanhar isso sem que haja uma retroalimentação de conteúdo, até que eu esteja convencido e investido no mundo e seus personagens, para aí, sim, eu aceitar grandes eventos numa narrativa. E mesmo assim, a essa altura, ainda é preciso ter muito cuidado, como um jogo de terror, por exemplo, que deve ter um bom nível de mistério e subjetividade para haver respeito do leitor. Acho que respeito é a palavra-chave da vez.

Kingdom Come Deliverance II arranca essa ideia de “big picture” e dá lugar às pequenas coisas e afazeres, físicos mesmo. Nenhum cogumelo vai virar poção com o clique de um botão. É preciso saber o tempo de fervura, se esmaga, se corta, se mistura em fogo alto ou baixo, se utiliza vinho, se utiliza água…

Como uma fácil aventura de se acompanhar, esse jogo se inicia e você o consome sem engasgos, aproveitando cada pequena narrativa minimalista, dessas que poderiam fazer comentários desde a grama seca, ao vento, à fofoca sobre quem vai casar com quem no vilarejo. Tudo bastante guiado, e você ali devidamente, esperando ansiosamente o jogo se abrir. Mas, cuidado com o que deseja… Não é exatamente o que vai acontecer aqui, mas isso me lembra algo que muita gente passou em Assassin’s Creed 3, quando no começo do jogo desejou loucamente que a parte de Haytam passasse logo para jogarmos com o moço da capa. Se você não viveu isso, o que tenho a dizer é que, a gente se arrependeu de desejar tal coisa e, de repente, só queria que o antagonista voltasse. Kingdom Come não é assim, mas pode fazer você lembrar que suas horas iniciais não tinham nada a ver com o que o jogo é de verdade. Nisso, você pode começar a sentir saudades desses bons tempos às vezes no processo, tudo isso devido à quantidade obscena de atritos que esse jogo tem.

Devido à natureza dos eventos ocorridos, sua situação se torna tão precária, que você não saberá direito o que fazer, genuinamente. Você está em um mundo realista, precário, com uma sociedade hostil e campos e mais campos abertos para se vagar.

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Trocando em miúdos, seu objetivo principal por muito tempo em Kingdom Come Deliverance II é ter uma palavra com uma figura importante de um reino distante, para entregar uma mensagem importante. Porém, seu personagem na ocasião estará sozinho, sem ajuda, desacreditado nas redondezas, fraco e sem dinheiro para começar absolutamente nada.

Se você curte aqueles quadros da casa de sua vó…

No processo, será impossível não ser exposto às confusões do vilarejo, e cabe a você fazer da ocasião a sua melhor alternativa. Se temos que entrar escondido na casa de alguém na calada da noite, por que não aproveitar para roubar uns queijos antes de investigar o que era para ser investigado? Ninguém iria ver, afinal, videogames funcionam assim, sem que NPCs que nem estejam ali não tenham o poder de dedução, correto? Errado. Aqui eles possuem o poder de dedução sim.

Acontece que amanhã de manhã seus bolsos estarão vazios e não vai ser divertido passar o dia com fome. E vai de você, porque se não prestar atenção nos números, os números… Eles podem te dizer muitas coisas, inclusive, se um alimento adquirido está estragado, e se você ousar consumir algo ruim, sofrerá de um piriri literalmente mortal. As pessoas nas ruas irão comentar sobre o seu estado péssimo, e é possível responder “cai fora!” “Não é nada”. Não há opção de pedir ajuda, exceto caso você tenha nos bolsos uns bons groschens, e esteja num vilarejo que possua estrutura para as enfermidades.

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Esse tipo de minúcia compõe o jogo de forma que se perde toda a grandiosidade dos épicos, dragões e magias, dando lugar a interações mundanas e dando a sensação de que o jogo é sobre viver ali, invés de alcançar coisas grandiosas.

Isso pode virar um problema, porque às vezes sinto que KCD2 me humilha tanto como jogador que cada morador da vila já decorou as mínimas curvas das minhas partes íntimas, de tanto que apanhei até conseguir roupas honestamente. (Ou não).

O combate tenta ser tão realista que beira a chateação de apanhar para cachorros. Talvez o lugar de seu personagem seja com as galinhas no quintal das duas casas, no máximo, porque a minha sensação é de que esse jogo quer desconstruir videogames como forma de entreter mediante pequenas séries de vitórias.

É preciso perseverança, irmão, para aguentar até ver uma luz no fim do túnel. É preciso mãos firmes e, no seu lugar, ceder aos crimes e pecados. Vai lá, se atira no matagal para passar por pessoas que você vê vindo na estrada, sem saber se são bandidos ou um guarda que sabe que você é o pivete procurado nas cercanias, já que a fofoca se espalha agora até pelas veias do meu PS5. Na verdade, pode até ser um aldeão qualquer, ele mesmo assim, se decidir que não vai com sua cara, ele poderia te deixar num estado de bosta se quisesse.

Minha primeira vitória foi resolver com sucesso um caso de desaparecimento local. Por mais de uma vez, eu pude desviar dinheiro destinado a outros fins, mas decidi me entregar ao role-playing de fudido e honesto.

PROMOÇÃO NA NUUVEM

Ledo engano. A velha vagabunda que ajudei e neguei recompensa continua a me cobrar por dívidas passadas, como um Tom Nook mais amante de dinheiro do que influencer de jogo do Tigrinho.

Esse é KCD2 e você ainda tem a pachorra de dizer que ele tem algo de Skyrim aqui. Quer dizer, é fácil apontar uma coleção de características parecidas, como: ser em primeira pessoa, ter um setting medieval mesmo não possuindo fantasia, ter um mundo aberto e árvores de diálogos…

Quer dizer, eu já fui a pessoa que, quando viu o trailer de The Last of Us pela primeira vez, achou que seria mais um Uncharted, só que remixado.

PROMOÇÃO NA NUUVEM

Depois da minha primeira longa tarde inicial com o jogo, eu saí pesado e exausto de brincar de me decepcionar como personagem. Na segunda vez, a cama de gato foi revelando seus fios da meada e eu fui me virando como podia, para obter o mínimo de progressão nessa monstruosidade implacável de jogo.

Então, puxando Skyrim novamente, há uma grande diferença na base dos dois. Na verdade, eu gostaria de deixar de comparar diretamente com Skyrim, para passar a chamar a atenção para jogos como Elder Scrolls, Starfield e Fallout no geral. Enquanto esses são excelentes jogos na hora de executar o senso de aventura, isso aí tem todo o direito de envelhecer, e os novos tempos clamam por mais que isso. É onde estamos. O texto e o carisma geral do jogo estão mais se inclinando para o trabalho da CD Projekt Red em The Witcher 3 do que para Elder Scrolls, já que esse é o alvo mais fácil.

É como se os jogos da Bethesda hoje trouxessem em seu texto a secura em saber as pequenas coisas que compõem a vida de um NPC. Para KCD2, temos mais esforço nisso, e então uma simples briga de bar pode te aproximar da dona da taverna. Tão logo você poderá estar ajudando ela servindo algum cliente chato e indesejado.

Existe um afobamento nesses jogos, como Starfield, em seguir direto ao ponto em sua escrita, onde tudo serve à contação da história sobre o seu objetivo final místico ou político naquele mundo. É como nas cidades de Pokémon, onde as pessoas respiram Pokémon e não sabem falar sobre outras coisas.

Certamente esta aqui  é uma experiência ímpar em videogames, mas os níveis de prazer devem variar entre os jogadores. Há de se pensar que haja coisas obscuras e não obscuras no PC há tempos, que fizeram coisas muito antes dessa franquia, porém dá para sentir muito forte que esse jogo aqui é minuciosamente preparado para se tornar uma visita garantida na casa de pessoas mundanas dos videogames, com o esforço de não subtrair sua essência.

KINGDOM COME DELIVERANCE II

SCORE - 8.3

8.3

MUITO BOM

Kingdom Come Deliverance II é uma experiência super íngrime quando estamos falando de desafios. Não se deixe enganar por seu alto valor de produção, pois estamos aqui tratando de um jogo hardcore, só que com muitos temperos em cima.

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